segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Os direitos humanos do inimigo

Muito se vem discutindo recentemente acerca de uma corrente de pensamento, o Direito Penal do Inimigo, encabeçada pelo jurista alemão Günther Jakobs, a qual é utilizada para legitimar ações estatais de combate enérgico ao terrorismo, pregando tratamento semelhante à criminalidade organizada (tráfico de drogas, crimes econômicos, etc.) e aos delitos sexuais.
Para os seguidores desta vertente, em apertada síntese, as pessoas seriam divididas em dois grandes grupos, os cidadãos e os inimigos, com aplicação de diferentes sistemas de Direito Penal a cada qual deles.
Os primeiros seriam todos aqueles que são considerados como pessoas de bem e que, quando porventura pratiquem crimes, realizam condutas que não negam a existência do Estado; em suma, “o cidadão é autor de crimes normais”[1] , sua conduta seria meramente acidental, não representando, “em absoluto, o princípio do fim da comunidade ordenada, senão apenas uma irritação, um deslize reparável. Assim, o indivíduo infrator é chamado, enquanto cidadão, a restaurar o equilíbrio da vigência normativa, o que se dá por meio da submissão a uma sanção penal”[2] .
Por isso, aos cidadãos criminosos seria imposta uma pena por aquilo que fizeram (Direito Penal do Fato), a fim de restabelecer, tão-somente, o tecido social lesado pelo seu ato.
Por outro lado, existem os inimigos, aqueles que perpetram condutas de alta traição, buscando destruir a Sociedade e, por conseqüência disso, para garantir-lhe a sobrevivência, o Estado estaria legitimado a declarar guerra contra eles, inclusive “assumindo o risco, no caso, também da morte de pessoas inocentes, conhecido como dano colateral.”[3] .
Nesta perspectiva, aos inimigos deve haver “aplicação antecipada da pena como segurança para impedir fatos futuros, com função de neutralização da periculosidade do autor, segundo a teoria das medidas de segurança”[4] , ou seja, a punição não está relacionada com os atos realizados pelo agente, mas, sim, com aquilo que ele é e faz (Direito Penal do Autor).
Saliente-se, por oportuno, que para Günther Jakobs o delinquente não teria sequer que consumar o crime ou até mesmo que dar início a qualquer iter criminis para ser considerado um inimigo, meros atos preparatórios já bastariam para tanto, tendo em vista o risco que ele causa à Sociedade.
Em razão dessa dicotomia entre os cidadãos e os inimigos, os adeptos da mencionada corrente consideram que também deva existir diferenciação entre o tratamento a ser conferido a cada um dos ocupantes desses dois grupos.
As pessoas de bem gozariam de todas as garantias e benesses do ordenamento jurídico de que façam parte; de outra banda, do inimigo esses direitos seriam totalmente suprimidos, pois, ao “não se submeter ao sistema normativo, decidindo por uma ruptura com o contrato social de modo que, não se submetendo ao sistema, a este não pertence. A conseqüência é que as normas do sistema não se aplicam ao ‘dissidente’.”[5] .
Por isso, para o Direito Penal do Inimigo, os cidadãos são considerados pessoas, enquanto que o inimigo é um mero indivíduo, sem ostentar aquele status, já que “a condição de inimigo implica sua desconsideração como pessoa”[6] . Aliás, é justamente “sua desconsideração como pessoa” que legitimaria o tratamento diferenciado, a supressão de garantias fundamentais e, até mesmo, o extermínio.
Por tudo o que foi dito, o Direito Penal do Inimigo é fortemente criticado pelas correntes mais garantistas, as quais entendem que, na vigência do Estado Democrático de Direito, esta divisão em amigos e inimigos da Sociedade não seria premissa válida, mormente porque as Constituições modernas, pelo mundo afora, pregam exatamente o contrário, a igualdade entra as pessoas, independentemente de cor, sexo, religião, riqueza e, certamente, do que fazem ou tenham feito em suas vidas.
Além disso, outro problema apontado com relação a esta vertente de pensamento reside na grande dificuldade de se estabelecer quem seria o tal inimigo e, ainda mais grave, quem teria legitimidade para apontá-lo.
Afinal, os detentores desse poder poderão subvertê-lo para perseguir grupo de pessoas, certamente mais fracos política e economicamente, que tenham interesses contrários aos seus, tornando o Direito Penal, mais uma vez, como já o foi no passado, um instrumento de controle, e lembrando, inclusive, da ideia de Karl Marx sobre o Direito como uma superestrutura ideológica (überbau) de dominação de algumas pessoas sobre outras.
Aliás, como se sabe, o conceito de inimigo da Sociedade não é novo e variou, nefastamente, ao longo da história; exemplos disso foram a caça às bruxas e aos não cristãos na Idade Média, o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, a perseguição aos comunistas nos países capitalistas durante a Guerra Fria e, hoje, o enfrentamento com traficantes de drogas nas periferias das grandes metrópoles.
Ora, amanhã, quem sabe, em razão de qualquer motivo, talvez por defender os direitos humanos, poderá ser este autor ou, até mesmo, o leitor deste texto, considerado o inimigo!
Outrossim, dentro do ordenamento pátrio, nem mesmo parece ser possível que a Sociedade possa identificar “rompimento com o contrato social” em atos praticados pelo tido como inimigo, é esse um dos fundamentos que legitimaria a supressão de suas garantias e direitos.
Isto porque, quando a Constituição Federal veda a pena de banimento (artigo 5º, inciso XLVII, alínea d) e a extradição de brasileiro nato (artigo 5º, inciso LI), ou seja, quando proíbe expressamente a sua “expulsão” do País, está exatamente indicando que o liame existente entre o o Estado e os que aqui residem – independentemente do que tenham porventura feito, é absolutamente inquebrável, já que nos dispositivos apontados inexiste qualquer ressalva que autorize conclusão diversa.
Ademais, afora inúmeras outras criticas muito relevantes já tecidas pela doutrina, é importante lembrar que a concepção do Direito Penal do Inimigo se choca frontalmente com a ideia vigente de Direitos Humanos.
Explica-se: já há algum tempo vem-se reconhecendo internacionalmente que todas as pessoas são dotadas de alguns direitos básicos e fundamentais, os Direitos Humanos, sendo que, e isto é ainda mais importante, estas garantias são inerentes à sua condição humana, o que, inclusive, vem expressamente destacado no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos[7] .
E, ressalte-se, mesmo a “criação de um sistema positivado não implica o abandono da raiz jusnaturalista dos direitos humanos. Ao contrário, é plenamente reconhecido que estes são inerentes ao ser humano, decorrendo daí que eles não surgem da vontade do Estado, mas são por este positivados, a fim de lhes conferir uma qualidade jurídico-normativa, possibilitando que sejam reconhecidos como fontes formais de direitos subjetivos e, se caso for, que sejam deduzidos em juízo ou perante órgãos internacionais”[8] .
Sendo assim, ao revés do que prega o Direito Penal do Inimigo, os direitos mínimos do ser humano, como a vida, a dignidade, além das garantias processuais básicas, como a assistência de um advogado, a ampla defesa, o contraditório, dentre inúmeras outras, – todos considerados direitos humanos –, jamais poderão ser suprimidos, não importando a conduta que a pessoas tenha praticado, por mais nefasta que seja.
Afinal, tendo em vista que, como visto acima, os direitos humanos não são concedidos pelo Estado, mas, na verdade, são atributos de todos, mesmo com o imaginado “rompimento com o contrato social” por um indivíduo, a sua condição de ser humano jamais é afetada.
Deste modo, mesmo que o Direito Penal do Inimigo seja considerado legítimo, este deverá sofrer uma enorme limitação, que o tornará quase que inócuo na concepção em que é defendido, pois a supressão de garantias defendida por essa corrente jamais poderá atingir os direitos humanos, já que o inimigo, por mais monstruoso que seja, ainda será um ser humano.
Notas
[1] DOS SANTOS, Juarez Cirino, O Direito Penal do Inimigo – Ou o Discurso do Direito Penal Desigual, página 5,pesquisado no site www.cirino.com.br, acesso em 20 de outubro de 2009.
[2] PRADO, Luiz Regis, Garantismo Jurídico-Penal e o Direito Penal do Inimigo: Uma Palavra, página 6, pesquisado no site www.regisprado.com.br, acesso em acesso em 21 de outubro de 2009.
[3] JAKOBS, Günther, Bürgerstrafresht und Feindstrafrecht, 2004, item IV, página 93, apud Juarez Cirino dos Santos, ob. cit., página 11.
[4] DOS SANTOS, Juarez Cirino,op. cit., página 8.
[5] CRESPO, Marcelo Xavier de Freitas. Direito Penal do Inimigo: Sobre o que Estamos Falando?, in Boletim IBCCRIM, ano 16, n.º 196, página 3, março de 2009.
[6] PRADO, Luiz Regis, op. cit., página 8.
[7] “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)” – com destaques.
[8] WEIS, Carlos, Direitos Humanos Contemporâneos, Malheiros, 1ª edição, 2ª Tiragem, 2006, página 23, com destaques.
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