quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Prisão preventiva deve se basear em elementos concretos

Para que o pedido de liberdade provisória seja negado, não basta a citação de um dos requisitos previstos no Código de Processo Penal que justifiquem a manutenção da prisão cautelar. O juiz deve ainda apontar elementos concretos e individualizados que demonstrem a necessidade da prisão. O entendimento é do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que concedeu liminar em Habeas Corpus para suspender a prisão cautelar de J.P.V., acusado de tráfico de entorpecentes após ter sido encontrado com 83 gramas de cocaína.
A defesa do suspeito, feita pelos advogados Alberto Zacharias Toron e Leopoldo Stefanno Leone Louveira, do escritório Toron, Torihara e Szafir, pediu a concessão da liminar ao STF para que fosse determinado o julgamento imediato de um HC, com pedido de liberdade provisória, no Superior Tribunal de Justiça ou para que o réu aguardasse em liberdade até o final do julgamento do pedido. O ministro Gilmar Mendes afastou a aplicação da Súmula 691 por entender que a situação é de flagrante constrangimento ilegal.
Em sua decisão, o ministro destacou que a manutenção da prisão preventiva deve indicar, de forma expressa, os fundamentos para a decretação da prisão cautelar do artigo 312 do CPP: garantia da ordem pública; garantia da aplicação da lei; ou conveniência da instrução criminal. No entanto, é preciso ainda que sejam apontados elementos do caso que caracterizem um dos requisitos expressos no dispositivo do CPP.
"Na linha da jurisprudência deste tribunal, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos, sendo necessário que a alegação abstrata ceda à demonstração concreta e firme de que tais condições realizam-se na espécie. Dessarte, a tarefa de interpretação constitucional para a análise de uma excepcional situação jurídica de constrição da liberdade dos cidadãos exige que a alusão a esses aspectos esteja lastreada em elementos concretos, devidamente explicitados."
Para Gilmar Mendes, a relatora do pedido de Habeas Corpus no STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao indeferir o pedido de liberdade provisória do suspeito, não indicou os elementos concretos e individualizados para demonstrar a necessidade da prisão.
O caso J.P.V. foi preso em flagrante no dia 15 de março de 2010 sob a acusação de tráfico de drogas, por estar com 83 gramas de cocaína. A defesa afirma que ele é usuário. Com o pedido de liberdade provisória negado pela juíza do Departamento de Inquéritos Policiais do Estado de São Paulo, os advogados impetraram Habeas Corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, alegando ausência de fundamentação da decisão de primeiro grau. A 9ª Câmara de Direito Criminal da corte estadual, por unanimidade, manteve a prisão provisória do réu para resguardar a ordem pública. Os advogados recorreram ao STJ. No entanto, a ministra Maria Thereza de Assis Moura também indeferiu a liminar.
Ao recorrer ao Supremo, a defesa alegou ausência dos requisitos da custódia cautelar e, ainda, a demora no julgamento do HC pelo STJ. Isso porque, apesar de a medida ter sido impetrada em maio de 2010 e do parecer favorável do Ministério Público Federal para se determinar a soltura do réu, até agora o HC não foi apreciado pela 6ª Turma do STJ.
Os advogados destacaram que a gravidade do delito de tráfico de entorpecentes, por si só, não justifica a prisão cautelar e consideraram inaceitável o argumento do TJ-SP de que incide a vedação legal do artigo 44 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) — que veda a concessão de liberdade provisória para acusados de tráfico de drogas —, pois o STF tem afastando o dispositivo.
"Não foi indicado nenhum elemento concreto que demonstrasse o porquê este caso específico ensejaria 'a onda de violência': seria pela quantidade de drogas? Seria pelo tipo de substância? Seria pela forma de atuação dos agentes? Nada foi explicitado. Não foi feita qualquer consideração sobre o caso concreto", alegaram os advogados do réu no HC dirigido ao Supremo. Por vislumbrar "patente situação de constrangimento ilegal", o ministro Gilmar Mendes deferiu o pedido de medida liminar.
Clique aqui para ler a decisão do ministro Gilmar Mendes.
HC 106.546

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Uso exclusivo de denúncia anônima é inconstitucional

Não obstante todas as proteções fundamentais assegurados na Constituição, a sociedade ainda se surpreende com a divulgação de que Ministro de Estado ignora o sigilo individual. Como se sabe, o texto constitucional deu relevo aos direitos e garantias que limitam os poderes do Estado. Neste universo, um dos destaques de 1988 está na proibição ao anonimato (artigo 5, inciso IV).
O núcleo fundamental ali previsto está na liberdade de manifestação, mas a previsão exige que o autor assuma tal posicionamento, de forma a garantir que não hajam perseguições ou injustiças. No fundo, há pouco debate sobre notícias anônimas levadas à Administração que, não raro, dão início à persecução punitiva sem identificação do denunciante ou assinatura em documentos. Outras vezes, estas utilizam pessoa jurídica fictícia, sem existência real.
Estes subterfúgios são utilizados com manifesto propósito de atingir a integridade de alguns, causando dolosamente dano à honra. Tais documentos encaminhados para a Administração devem merecer das autoridades atenção a tão fundamental aspecto. Como primeira medida, impende a tentativa de obtenção dos registros do denunciante ou aclaramento da procedência.
Tanto assim que, além da Constituição, o legislador veda o anonimato através de várias normas, como contido no artigo 144 Lei 8.112/90, artigo 14 Lei 8.429/92 e artigo 6° Lei 9.784/99 impondo a qualificação. Ante a literalidade das normas, a doutrina rejeita o desenvolvimento de processo sem identificação do denunciante, como salienta Bandeira de Mello, para quem as denúncias serão apuradas desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada sua autenticidade.
Isto porque, como afirma José Afonso a liberdade de manifestação de pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato. Ao exigir tal identificação cumpre-se o preceito constitucional, ou seja, evita-se que se faça denúncia anônima apenas para pôr em dificuldade servidor do qual se tenha inimizade ou se pretenda apenas prejudicar, nas palavras de Nelson Nery.
O enunciado constitucional contra o anonimato encontrou sua discriminação naqueles diplomas, não merecendo diminuição ou restrição de seu conteúdo. Como se adverte a proibição ao anonimato não abrange tão-só as clássicas apostilas de mal dizer, as mandadeiras apócrifas, injuriosas, difamatórias ou caluniosas, como qualquer outra comunicação, incitando à desordem, à subversão, à desobediência civil, isto exemplificativamente, como fala Alcino Falcão.
Por tudo, o ordenamento estabeleceu a possibilidade do cidadão formular denúncia, a ser recebida desde que com a obediência para admissibilidade. Por força da Legalidade, a Administração somente deveria processar delação, após examinados critérios mínimos, sob pena de autorizados o arbítrio ou abuso de poder.
Conquanto não se duvide que o administrador pode e deve apurar as denúncias recebidas, o recebimento das representações denunciatórias cumpridoras dos requisitos tem o escopo de preservar a dignidade das pessoas, da estrutura dos cargos públicos e constitui direito subjetivo dos particulares contra denúncias vazias, perseguições políticas, agressões à honra por desafetos ou de má-fé. Tudo de modo a evitar que, sob o manto do anonimato, irresponsáveis venham a vilipendiar a imagem de cidadãos e a própria Administração.
Não se pode desconsiderar que essas denúncias, muitas vezes são apresentadas como vingança, devendo a autoridade, de posse de um documento apócrifo, ultimar com cautela redobrada, evitando expor as pessoas a deflagração de um processo disciplinar.
A apocrifia deve ser combatida já no nascimento eis que a denúncia anônima não pode, evidentemente, servir de base para qualquer condenação, já que é muito temerário submeter o cidadão a um degradante processo de investigação criminal, sem que haja qualquer comprovação de fatos, meramente em decorrência de informações advindas não se sabe nem de quem, nem de onde, para ao final, em não raras hipóteses, constatar a falta de veracidade das alegações (TRF2 - HC 2003.02.01011011-0).
O tema foi enfrentado pelo STJ reconhecendo que a Justiça não pode ordenar a instauração de inquérito policial, a respeito de autoridade sujeitas à sua jurisdição penal, com base em carta anônima (AgRg Inq 355). A questão ganhou definitividade com a posição do STF e a impossibilidade de atuação do poder público só com provocação anônima, respeitando as leis mencionadas e à cláusula pétrea do artigo 5º.
Neste sentido, no julgamento do HC 84.827 o ministro Marco Aurélio escoliou que a instauração de procedimento criminal originada, unicamente, de documento apócrifo seria contrária à ordem jurídica constitucional, que veda expressamente o anonimato. Salientando a necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, afirmou que o acolhimento da delação anônima permitiria a prática do denuncismo inescrupuloso, voltado a prejudicar desafetos, impossibilitando eventual indenização por danos morais ou materiais, o que ofenderia os princípios consagrados nos incisos V e X do art. 5º da CF.
Esta decisão do STF consolida a exegese constitucional, eis que destaca a necessidade de identificação do denunciante como forma de preservar a dignidade da pessoa humana, notadamente para permitir ao denunciado o amplo conhecimento do procedimento, impedindo autorias reservadas, até mesmo para futura responsabilidade. Importante observar que a questão já vinha sendo desenhada no julgamento (STF - MS 24.405) sobre o sigilo das denúncias perante o TRIBUNAL DE CONTAS, onde afirmou-se a mácula da norma do TCU.
A questão axial era se poderia ou não a persecução penal ou a atuação disciplinar investigar os fatos trazidos por denúncias apócrifas. Mas se afirmou a impossibilidade de formação do processo disciplinar ou penal apenas com a denúncia anônima. Pode a Administração, a partir de informações nas delações iniciar procedimentos apuratórios prévios, mas nunca instaurar o processo administrativo disciplinar ou o inquérito com base única e exclusiva na denúncia irregular.
Consagrando estes pontos, o Plenário do STF (Inqu. 1957) rejeita o anonimato e a instauração de medidas com base exclusiva neste, afirmando o Min. CELSO DE MELLO que o veto constitucional ao anonimato busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e na formulação de denúncias apócrifas, pois, ao exigir-se a identificação de seu autor, visa-se, em última análise, com tal medida, a possibilitar que eventuais excessos derivados de tal prática sejam tornados passíveis de responsabilização, a posteriori, tanto na esfera civil quanto no âmbito penal, em ordem a submeter aquele que os cometeu às conseqüências jurídicas de seu comporta¬mento.
Registrou ainda que tal previsão esteve presente desde a primeira Constituição Republicana e que o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo, viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados.
Além destes pontos, o Ministro apoia-se ainda no direito comparado, inclusive para lembrar que na Itália, quer sob a égide do antigo Código de Processo Penal de 1930, editado em pleno regime fascista, quer sob o novo estatuto processual penal promulgado em 1988, a legislação processual peninsular contém disposições restritivas no que concerne aos documenti anonimi, às denunce anonime ou aos scritti anonime, estabelecendo que os documentos e escritos anônimos não podem ser formalmente incorporados ao processo, não se qualificam como atos processuais e deles não se pode fazer qualquer uso processual.
Por óbvio, o Estado tem o dever de apurar e punir qualquer agente seu ou particular que transgrida o ordenamento. Todavia, a instauração de procedimento única e exclusivamente por denúncias anônimas é ilegal e inconstitucional. Impõe-se investigação vestibular para validar, evitando procedimentos irregulares fruto de denuncismo de perseguição.
Texto inserido na Academia Brasileira de Direito em 4 de setembro de 2006

domingo, 7 de novembro de 2010

Banalização da prisão cautelar por Ludmila Santos

A superexposição de crimes na imprensa, principalmente os considerados bárbaros, tem um grande impacto não só na formação da opinião pública, mas também nas decisões judiciais. Mesmo com o princípio da presunção da inocência, garantido pela Constituição Federal, muitos são os casos em que um suspeito é preso cautelarmente antes de sua condenação definitiva. Como consequência, os tribunais superiores recebem cada vez mais pedidos de Habeas Corpus como forma de impedir que o cidadão seja alvo de arbitrariedades por parte do Estado.
A questão é complexa e envolve uma série de fatores, de acordo com especialistas do Direito. Alguns avaliam que a divulgação diária da violência de forma escancarada pela mídia aumenta o clamor público para a definição dos casos mesmo antes de uma solução jurídica, como forma de se combater a impunidade.
A prisão do réu durante o curso do processo deve ser considerada em caso excepcional. No entanto, para o advogado criminalista José Roberto Batochio, essa hipótese está se tornando uma regra no Brasil. "A Constituição garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. Mas estão invertendo essa equação. Isso é uma deformidade, uma subversão de um direito constitucional. Neste quadro, o direito de liberdade, que é o mais precioso bem jurídico que integra o patrimônio do homem, está se tornando um bem jurídico de terceira categoria."
Batochio observa que tanto o Ministério Público quanto juízes de primeira instância têm agido de forma mais dura, passando por cima de um direito constitucional, com a desculpa de se preservar a ordem pública ou mesmo por pressão da sociedade. Isso acaba provocando a banalização da supressão da liberdade. "A Justiça não pode ceder a esse tipo de pressão. Ela deve ser equilibrada, ter como base princípios humanísticos, ser impessoal. Caminhamos para um endurecimento do autoritarismo burocrático. Por isso é importante termos uma defesa técnica, que repudia esses excessos."
Para o criminalista, os excessos nas prisões preventivas não contribuem em nada para o aperfeiçoamento social. "Isso só é possível com o respeito ao sistema de leis. E se o legislador optou, ao propor e aprovar a Constituição, por considerar que a liberdade deve ser preservada até a sentença condenatória definitiva, ressalvado casos de inafastável perigo do acusado, isso deve ser respeitado."
Batochio destaca a postura de alguns julgadores que tentam copiar o modelo da doutrina americana nos casos de prisão cautelar decretada. De acordo com o criminalista, dos mais de 300 milhões de habitantes nos Estados Unidos, quase 3 milhões estão encarcerados. No entanto, o problema em se adotar os moldes americanos é que o Brasil vive uma realidade social e econômica diferente. Enquanto os Estados Unidos possuem recursos para manter suas instituições prisionais, o sistema penitenciário brasileiro é um verdadeiro caos. "Aqui, os presídios e cadeias são verdadeiros depósitos humanos, locais insalubres, que não permitem o mínimo de dignidade humana. O réu é tratado como um número, uma abstração. Seus direitos são cada vez menos respeitados."
Num país em que existe uma grande dificuldade em se alocar detentos em um local com segurança e dignidade, a prisão cautelar acaba sendo pior que a pena, de acordo com o criminalista Rodrigo Dall’Acqua, do escritório Oliveira Lima, Hungria, Dall'Acqua e Furrier Advogados. Para ele, falta conscientização tanto do MP quando dos juízes de primeira instância para que a prisão preventiva seja decretada nos casos de extrema necessidade.
De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a prisão cautelar pode ser decretada para garantir a ordem pública, nos casos em que existe o risco de o acusado, se continuar em liberdade, praticar outros crimes ou atrapalhar o curso do processo ou mesmo quando há o risco de fuga do réu. "A prisão cautelar não pode ser uma resposta antecipada ao crime, usada para não desagradar a opinião pública ou mesmo para que juízes não sejam vistos como favoráveis ao réu. Enquanto isso não ocorrer, vamos continuar com uma enxurrada de Habeas Corpus nos tribunais superiores, mesmo com a jurisprudência consolidada que garante o direito à liberdade."
Habeas CorpusSó neste ano, entre janeiro de setembro, o Supremo Tribunal Federal concedeu 344 pedidos de Habeas Corpus. A corte conferiu 39 deles por deficiência de fundamentação na decretação da prisão cautelar. Os números também apontam que houve um crescimento na concessão dessa medida: em 2009, foram dados 428 HC e em 2008, 355.
Por conta disso, se por um lado existe uma corrente que critica o número excessivo de prisões cautelares, há quem considere que a banalização se encontra no uso dos Habeas Corpus. É o caso do desembargador Eduardo Machado da Costa, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que já recebeu mil ações desse tipo para serem julgadas em pouco mais de um ano.
Na corte mineira, foram apresentados pouco mais de 7 mil Habeas Corpus em 2005; quase 17 mil em 2009; e, de janeiro a agosto de 2010, já são 14,5 mil. Dados do tribunal apontam ainda que só o caso do desaparecimento de Eliza Samudio já gerou 43 ações desse tipo em favor dos acusados, que continuam presos. Pelo menos 22 pessoas comuns ingressaram com Habeas Corpus em favor do goleiro Bruno Fernandes. E é por isso que o desembargador critica a previsão constitucional que admite qualquer pessoa como impetrante de HC. "A medida deve ser tratada como forma extrema para proteger aquele cidadão que foi preso sem motivação."
Para o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, do escritório Toron, Torihara e Szafir, não há uma banalização do uso do Habeas Corpus, mas sim uma gama muito grande de casos em que a medida pode ser utilizada. Via de regra, o HC pode ser usado sempre que alguém entender que está sofrendo violência ou coação em relação a sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Se o suspeito é preso em flagrante, por exemplo, e o juiz mantém sua prisão, o acusado pode pedir a liberdade provisória. Se ele não foi preso em flagrante, mas o juiz decretou sua prisão preventiva, o suspeito pode usar o HC para pedir a revogação da prisão. No entanto, Toron ressalta que a medida também pode ser usada para discutir questões de natureza jurídica, como nos casos de nulidades processuais, inépcia na denúncia, abusos processuais de juízes ou quando há a falta de justa causa para a ação penal. "O HC é um direito do réu e o advogado deve impetrar a medida caso julgue necessária. Cabe aos tribunais deferi-lo ou não."
Nessa mesma linha, o defensor público Pedro Giberti, coordenador do Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores da Defensoria Pública de São Paulo, afirma que o Habeas Corpus é um instrumento eficaz de discussão de questões jurídicas por ser uma medida mais rápida do que outros recursos. "No Recurso Especial, por exemplo, a parte contrária pode se manifestar, depois o recurso será analisado para ser admitido, ou seja, há trâmites que tornam a apreciação do pedido mais lenta. Nesse sentido, o HC abrevia a apresentação nos tribunais superiores de questões fundamentais à defesa dos direitos de acusados ou mesmo condenados."
Nos nove primeiros meses de 2010, 5.475 Habeas Corpus foram impetrados no Superior Tribunal de Justiça e 64 no STF pela Defensoria de São Paulo. Segundo o órgão, essa diferença de números nos dois tribunais se dá porque a Defensoria consegue procedência total ou parcial na grande maioria dos HC no STJ. Em 2009, os HCs interpostos pela Defensoria paulista no STJ representaram 20,7% de todas essas ações impetradas no tribunal.
Mesmo quando a medida é usada em ações que envolvem muitos réus e, nesses casos, o juiz é obrigado a parar o processo para analisar os pedidos de cada um, o defensor considera o uso da medida legítimo. "Nessas ações com muitos acusados, geralmente, a defesa entra com HC porque a denúncia não descreve a participação do seu cliente no crime. Fica difícil se defender se não está claro qual é a acusação." Ou seja, de acordo com o defensor, a questão não é apenas se o HC está banalizado, mas também se os procedimentos das ações estão corretos por parte do MP e dos julgadores, o que leva os réus a recorrer.
Para o desembargador Almeida Toledo, da 16ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, muitos Habeas Corpus são impetrados em momentos do processo em que a medida não é cabível. Nos casos de execução, por exemplo, o recurso correto é o agravo de execução. “Pode haver tanto desconhecimento de quem entra com o HC, pois essa a medida pode ser usada pelo próprio preso, sem a necessidade de um advogado, ou mesmo a intenção do defensor do réu de acelerar a apreciação do seu pedido”, explicou o magistrado.
Almeida Toledo acredita que o fato do Habeas Corpus ter de ser analisado com muita atenção e rapidez, uma vez que pode se tratar de pedido de liberdade, provoca o desvirtuamento da medida. “Isso entulha os tribunais. Se houvesse uma triagem preliminar, esses pedidos cairiam drasticamente”.
No entanto, o desembargador também reconhece que existe abusos ou erros técnicos na decretação das prisões cautelares, o que também contribui para o aumento dos HC. “Acredito que é necessário, em primeiro lugar, o discernimento para quem decreta a prisão, porque, uma vez que ela é uma exceção, não pode ser determinada por deduções. Nesse sentido, acredito que o TJ-SP tem sido bastante rigoroso e criterioso”, destacou. “Num segundo momento, também é necessário mais critério nos pedidos de liminares. O que não significa que o réu não tem direito de solicitar sua liberdade provisória, mas ele deve recorrer às medidas corretas.”
Crimes hediondos Outra questão levantada por Giberti é a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/25 de julho de 1990). Para ele, com a publicação da lei, ser suspeito de cometer um crime passou a ser uma forma de ameaça. "Esse dispositivo jurídico foi feito para combater a criminalidade, mas acabou escorregando na desmoralização do princípio da presunção da inocência. O resultado é a desconstitucionalização do processo penal."
Dentre os crimes considerados hediondos, destacam-se, entre outros, o homicídio, o latrocínio, a extorsão, o estupro e o tráfico de drogas, modalidades de crimes que provocam revolta social. Há casos, segundo o defensor, em que os tribunais ficam constrangidos de enfrentar o clamor público. No entanto, cada caso deve ser avaliado com muito critério, segundo Giberti. "Até que ponto o pequeno traficante, por exemplo, deve ser considerado uma ameaça para que ele tenha de ficar preso mesmo antes de seu julgamento?", questiona o defensor.
Ele deu como exemplo o Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem uma postura rigorosa nesses casos e nem sempre considera o princípio da presunção da inocência. Como consequência, mais acusados recorrem aos tribunais superiores para garantir a aplicação de um direito constitucional. Para Giberti, a Defensoria de São Paulo deixaria de impetrar muitos Habeas Corpus se a Justiça do estado fosse mais criteriosa na decretação das medidas cautelares.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Juiz pode aplicar pena alternativa a traficante

Condenado por tráfico de drogas, primário, bons antecedentes e que não participe de organização criminosa pode ser beneficiado com a conversão de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, também conheçida por pena alternativa. O Supremo Tribunal Federal, em 1o de setembro de 2010 fixou este entendimento, declarando inconstitucional o art. 44, da Lei 11.343/2006 (Lei Anti-drogas), que dispõe que o condenado por crime de tráfico não poderia ver substituida a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Também a 16a Câmara de Direito Criminal de São Paulo ficou este entendimento, nos autos de Apelação Criminal 990.10.104951-1, onde os Desembargadores entenderam que "O assunto é polêmico e a decisão do Supremo não foi erga omnes, ou seja, não está decidido que deve haver uma liberação desta natureza" mas concluiram que o art. 44 fere a individualização da pena, onde cada juiz deve ter liberdade para fixar a pena mais adequada e justa ao caso, sem prévio regramento do legislador. Ademais, a pena alternativa propicia maior chance de ressocialização (finalidade da pena) enquanto que a pena privativa de liberdade (cadeia) gera maior periculosidade e um índice de ressocialização muito pequeno. Merece aplausos as decisões dos Tribunais que dão ao Magistrado, segundo as circunstâncias do caso, as peculiaridades de cada crime, do acusado, a liberdade de sentenciar se manda para a cadeia o traficante ou determina o cumprimento de uma pena restritiva (prestação de serviço a comunidade, prestação pecuniária, cumprimento de condições, etc.).

domingo, 24 de outubro de 2010

Ministro Marco Aurélio afasta homicídio em transmissão de HIV

Por haver tipo penal específico para caracterizar o ato de portador do vírus HIV omitir a doença da parceira — perigo de contágio de moléstia grave — não há como imputar a ele o artigo 121 do Código Penal. Com esse entendimento, o ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal desclassificou a tentativa de homicídio e determinou a distribuição do caso a uma das varas criminais comuns de São Paulo.
Em sua decisão, o ministro afastou a Súmula 691, que impede a concessão de HC contra decisão de relator que, em HC apresentado em tribunal superior, tenha negado a liminar. “Para que o Habeas Corpus se mostre adequado, é suficiente apontar-se, como causa de pedir, ato ilegal e ter-se, de alguma forma, cerceada a liberdade de ir e vir quer na via direta, quer na via indireta”, explica.
O acusado pediu, no Habeas Corpus, para ser libertado. Entretanto, sua prisão foi baseada, em um boletim de ocorrência, pela ameaça a testemunha, que foi contaminada pelo agressor. Para o ministro, o comportamento agressivo do réu não permite que ele aguarde seu julgamento em liberdade. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Clique aqui para ler a decisão.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Acusação de crime sem provas gera indenização

Funcionário acusado de furto sem provas do crime tem direito a indenização por danos morais. A conclusão é da 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que manteve a condenação imposta para a Volkswagen pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. A Turma, porém, reduziu o valor da indenização de R$ 525 mil para R$ 262 mil.
O trabalhador da montadora foi acusado da tentativa de furto, mesmo não havendo provas contra ele. Ele dirigia o caminhão que carregava as peças furtadas. De acordo com o processo, após o crime, o segurança da empresa submeteu o funcionário a um interrogatório em uma sala reservada da empresa. Uma testemunha o apontou como o autor do furto e ele foi algemado e preso. O fato foi objeto de ação penal. Porém, o trabalhador foi absolvido por ausência de prova. Em seguida, propôs ação trabalhista contra a Volkswagen, pedindo o pagamento de verbas rescisórias e reparação por danos morais.
A primeira e segunda instâncias concederam as verbas rescisórias e condenaram a empresa a pagar indenização ao trabalhador de R$ 525 mil. Para o TRT-2, as verbas rescisórias eram devidas, pois não ficou comprovada a justa causa. A reparação por dano moral foi justificada pelos “os procedimentos imprudentes e arbitrários da empresa – que deteve o empregado com poder de polícia, baseando-se em frágeis declarações de uma testemunha - extrapolaram o direito potestativo do empregador”.
Ao analisar o Recurso de Revista da Volkswagen, a relatora do acórdão no TST, ministra Maria Cristina Peduzzi, concordou com a indenização. Mas acolheu a proposta da ministra Dora Maria da Costa para reduzir o valor por considerá-lo excessivo. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
RR 114440-26.2005.5.02.0463

sábado, 16 de outubro de 2010

Entrevista com o Advogado Criminalista Kakay

"Nós advogados ganhamos muito em cima do que não é bem feito pela polícia e com os erros do Ministério Público. Alguns abusam, com um autoritarismo inacreditável". A frase é do advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, famoso por defender acusados conhecidos como os banqueiros Salvatore Alberto Cacciola, Daniel Dantas, os governadores José Roberto Arruda e Roseana Sarney, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, e empresas, como a empreiteira Odebrecht e o Banco Safra.
Em entrevista concedida à revista Poder, o criminalista fala de sua vida pessoal e como é ser advogado criminalista diante do que ele chama de "mídia opressiva". Kakay conta que se surpreendeu quando seus filhos pediram para não defender os acusados de atear fogo no índio em Brasília. "Eu quase morri de susto", ressalta.
"O advogado criminal tem de ter cuidado para não ser confundido com os clientes", aponta. O criminalista além de ser um notório advogado é também uma pessoa influente e transita livremente nos bastidores da política. Foi ele quem aconselhou o presidente Lula a nomear Cláudio Fonteles para a Procuradoria-Geral da República e é consultado com frequência pelos medalhões da política quando as denúncias apertam.
Ele diz também ser contra o poder de investigação do Ministério Público porque este escolhe as provas para fazer a acusação, e que o mesmo acontece com os juízes dos tribunais superiores. "Por exemplo, no caso do Paulo Medina [ministro do STJ acusado de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis], durante a investigação, várias medidas foram concedidas pelo ministro Cezar Peluso [do STF]. No julgamento, eu levantei várias liminares contra essas medidas e o próprio Peluso as defendeu porque eram dele", assevera.
Leia o texto e a entrevista publicados na revista Poder:
“Rei do Habeas Corpus" poderia ser um título adequado para Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido pela alcunha de Kakay. O advogado criminalista já provou, por sua trajetória de quase 30 anos, que tem a chave da cadeia. Livrou dela gente como os banqueiros Salvatore Alberto Cacciola e Daniel Dantas. E já defendeu de acusações cabeludas (e de grande repercussão na mídia) os governadores José Roberto Arruda e Roseana Sarney, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, e empresas, como a empreiteira Odebrecht e o Banco Safra.
No ti-ti-ti de Brasilia, nos tribunais superiores, diz-se: prendeu, ele solta; acusou, ele absolve. Se o réu é culpado ou não, o criminalista não palpita: "Não estou lá para julgar". Habilidoso nas relações sociais (circula tanto no governo como na oposição), garante que sua façanha é técnica: analisa os processos à procura de deslizes na investigação da Polícia Federal ou na alegação do Mistério Público e planeja estratégias de acordo com o perfil de seu opositor. Quase sempre tem êxito. Mesmo na defesa de clientes "massacrados pela mídia", expressão que Kakay adora repetir.
Nesta entrevista, em uma suíte no hotel Emiliano, em São Paulo — onde se hospeda com regularidade —, diz gostar mesmo é de uma boa conversa, como bom mineiro, de Patos de Minas. Mora em Brasília, mas adora seu apartamento com vista para o mar na avenida Vieira Souto, no Rio.
Na capital federal, é sócio do restaurante Piantella, endereço que recebe a nata dos três poderes e onde ele costuma cantar — um de seus hobbies. No seu repertório, Roberto Carlos, que já foi seu cliente e o deixou nas nuvens quando telefonou para agradecer-lhe os serviços prestados. Também adora poesia. Guarda em casa uma biblioteca de mais de mil livros de poetas: de Fernando Pessoa a um tio mineiro, Leão de Formosa, cujos versos chegou a recitar durante a entrevista. Casado pela segunda vez com a madrinha de seu primeiro casamento —, tem três filhos: além do caçula de 5 anos, é pai de dois homens — um quase arquiteto, de 24 anos, e um estudante de direito, de 22, que já avisou ao pai que será escritor. "São intelectuais como a mãe, que é minha amiga", diz, referindo-se à procuradora da Fazenda Sônia Portela, com quem foi casado durante nove anos.
Nega veementemente a fama de petista, bradando que defendeu muito mais graúdos tucanos. Assume-se muito amigo de José Dirceu, mas também de José Sarney. Sua rede de influências no governo é tamanha que, segundo conta, foi o articulador da presidência do Senado entre o PT e José Sarney. Não só: aconselhou o presidente Lula a nomear Cláudio Fonteles para a Procuradoria-Geral da República e é consultado com frequência pelos medalhões da política quando as denúncias apertam. Como no caso do Mensalão do PT, quando recomendou que José Dirceu contratasse um advogado ligado ao PSDB, o que contribuiria para a imagem do ex-ministro da Casa Civil. Sobre tudo isso, Kakay fala. E muito mais. Inclusive sobre a falta de isenção dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A seguir, trechos da entrevista:
PODER: Comenta-se que o senhor teve muitas vantagens no governo Lula. Uma delas foi o acordo da Caixa Econômica Federal com o fundo de pensão dos funcionários, quando dividiu com o advogado José Eduardo Alckmin uma comissão de R$ 32 milhões.KAKAY: Esse acordo foi assinado no fim do governo Fernando Henrique [Cardoso]. O pagamento é que foi no governo Lula. Fiquei rouco de dizer isso, mas ninguém queria ouvir. No governo Lula, não ganhei nada a mais. Meu escritório é no mesmo lugar e do mesmo tamanho. No governo FHC, eu advoguei para 13 ministros. No governo Lula, só para dois.
PODER: O senhor disse a vários jornalistas que votaria em José Serra. Isso foi para amenizar a sua fama de petista?KAKAY: Tive uma conversa longa sobre isso com Fernando Henrique, há uns 20 dias. A alternância de paderé absolutamente salutar, e o Serra não é simpático, mas é preparado. Só que ele fez tudo para que não votássemos nele. E eu não faço política partidária, mas tive muito mais clientes do PSDB. Mesmo assim, a mídia me uniu ao PT.
PODER: Com a sua visão privilegiada dos bastidores do poder, como enxerga as denúncias contra o governo Lula?KAKAY: Advogado não se impressiona com manchetes, principalmente em época de eleição. O caso da [ex-ministra da Casa Civil] Erenice Guerra, eu desconheço. Conheço o processo do Mensalão do PT e não acredito que tenha existido, muito menos com a participação do ex-ministro José Dirceu. O PSDB o escolheu como alvo porque ele seria o próximo presidente da República.
PODER: O PSDB tinha essa força?KAKAY: Tem forças que Deus duvida. Advoguei nos governos do PSDB e via como funcionava, com uma procuradoria muito menos atuante. O presidente Lula me pediu uma indicação sobre quem seria o melhor para procurador-geral da República, e eu disse: "O melhor é o está aí, há oito anos pelo PSDB. Agora, se quiser dar autonomia para o Ministério Público, vamos nomear o Cláudio Fonteles", que foi nomeado. Uma das virtudes do governo Lula foi fortalecer o Ministério Público. E o que mais me chateou na campanha do Serra contra a Dilma Roussef foi repetir o erro de dizer que o Brasil iria quebrar, como quando Lula foi candidato.
PODER: O receio em relação a Dilma não se refere mais a uma postura autoritária, à la Hugo Chávez?KAKAY: É água pro vinho, sendo que o vinho bom é a Dilma (risos) As instituições brasileiras estão em outro patamar e a imprensa tem ampla liberdade. O problema é que a imprensa não quer ser criticada. No direito criminal por exemplo, temos uma mídia opressiva, um fenômeno que precisa ser analisado.
PODER: O que chama de mídia opressiva?KAKAY: No caso Nardoni, por exemplo, talvez se tenha pela primeira vez no Brasil a chance de se anular um processo pelo excesso de exposição durante o julgamento com a cobertura televisiva, a pressão no júri foi enorme.
PODER: E como o senhor avalia o caso do jornal O Estado de S. Paulo, impedido por medida judicial de publicar reportagem sobre o empresário Fernando Sarney,filho de José Sarney envolvido em operação da Polícia Federal?KAKAY: Quando vi essa decisão, aconselhei José Sarney a fazer uma nota para eu levar ao diretor do Estadão. Não quero criticar a decisão do Fernando e de seu advogado,mas eu não faço isso, porque caracteriza censura. Com um cliente massacrado pela mídia, tem de saber se contrapor. Quando eu advogava para o Cacciola, fui a um diretor da Folha de S.Paulo e disse que precisava de uma página para falar, porque não dava só para sair o outro lado.O jornal publicou uma entrevista minha, que fez com que outros veículos viessem conversar comigo de forma diferente. Mas o problema do Fernando é sobre o sigilo do processo, que também é uma questão grave.
PODER: Por quê?KAKAY: Quase todo processo fica em sigilo de Justiça, só que quando interessa, a Polícia Federal vaza para a imprensa.. O jornalista tem o direito de publicar, mas o advogado não pode rebater, porque continua sob sigilo.Ele procura também vazar informações, só que não tem o mesmo efeito. Como notícia, interessa mais uma acusação do que uma defesa. Então o cliente é massacrado.
PODER: Corre nos bastidores que José Dirceu promovia essa política de vazamentos, quando era oposição.KAKAY: Conheci o Zé quando ele era deputado e vejo muitos mitos sobre ele. Um deles é que ele era esse vazador-mor. Ele participava de CPls c apresentava muitas denúncias, inclusive contra a Zélia [Cardoso de Mello, ex-ministra da Fazenda, acusada de corrupção no governo Collor], que virou minha cliente.
PODER: Dirceu lhe deu muitos casos?KAKAY: Muitos. (risos) Antes de ser ministro. Depois, não me deu mais nenhum. Nem o dele.
PODER: Não foi o senhor que o aconselhou a procurar um advogado ligado ao PSDB?KAKAY: Exatamente. Na época das denúncias do Mensalão, Zé me procurou e eu disse. ''Você está tão marcado que é melhor procurar o José Carlos Dias, que foi ministro do PSDB e a pessoa que mais me ajudou na minha vida profissional". Mas o Dias já era advogado de um banco.AÍ eu indiquei o Juca [José Luis de Oliveira Lima].
PODER: Como é a sua relação com José Sarney?KAKAY: Muito boa. Nunca tinha falado com o presidente Sarney até o dia em que ele me ligou para dizer que a filha estava com aquele problema da Lunus [empresa da governadora do Maranhão na qual, em 2002, a PF apreendeu o que seria um dinheiro de campanha não declarado]. Quando cheguei à casa de Sarney, estavam ele, o [senador] Jorge Bornhausen e a Roseana. E eu disse: "Presidente, quero conversar sozinho com Roseana". E eu senti que ali surgiu uma empatia. Roseana perdeu a candidatura [à Presidência da República], mas não foi sequer processada, não virou ré. Nós provamos que existia um abuso do Ministério Público, conseguimos a devolução não só do dinheiro como de toda a documentação que foi apreendida. Depois disso, passei a freqüentar a casa de Sarney e fiz questão de dizer a ele: "Presidente, quero que saiba que eu sempre fui um opositor ao senhor".
PODER: Por que não gostava de José Sarney?KAKAY: Porque tive uma formação de esquerda e tinha outra visão do político Sarney.
PODER: E, hoje, qual é a sua visão sobre ele?KAKAY: Como pessoa,gosto muito dele. Como político, é muito hábil e foi importante na presidência do Senado. Pouco antes do governo Lula, quando se cogitou no PT a hipótese de Sarney presidir o Senado, fui falar com ele, a pedido de uma pessoa do governo.
PODER: De quem? Alguém do PT?KAKAY: Lógico, um mês antes de o presidente Lula assumir, uma pessoa do PT me pediu para consultar o Sarney.
PODER: O senhor de fato articula os bastidores do poder?KAKAY: Eu tenho muitos amigos. Tem advogado que se relaciona com o cliente somente no tribunal. Eu não,eu sou amigo de governadores de todos os partidos. Advoguei pro (José Roberto) Arruda, pro (Joaquim) Roriz, pro Paulo Octávio e tenho boas relações com essas pessoas.
PODER: E, como amigo, participa do manejo de poder?KAKAY: Não, também não é assim. No governo Lula, eu nunca fui ao Palácio do Planalto.
PODER: E precisa ir ao palácio para ter influência?KAKAY: (risos) Sou sócio do Piantella e nunca convidei um membro do Supremo para jantar lá
PODER: O senhor tem amigos mais influentes do que os ministros do STF, não?KAKAY: Tenho, e em todas as áreas, inclusive na imprensa. (risos)
PODER: Se o cliente é culpado não importa para o senhor?KAKAY: Eu não sou juiz, nem padre, nem Deus. Eu vejo se tenho condições de fazer uma defesa técnica boa. Já tive cliente que chegou ao meu escritório e disse: "Eu matei a minha mulher", e eu advogo. Felizmente, nunca perdi um caso de cliente que tenha matado a mulher.
PODER: Absolveu homens que mataram suas mulheres?KAKAY: Nos casos em que atuei, ganhei. E sem tese de honra, nada disso.
PODER: O senhor faz o tipo "advogado do Diabo", é isso?KAKAY: (risos) Eu só advoguei uma vez com a mídia favorável. É a melhor coisa do mundo. Foi nos anos 90, no caso Marco Velasco, morto por uma gangue. Foi o primeiro júri transmitido ao vivo no Brasil, 36 horas no ar.
PODER: Mas o senhor não teve mais vezes a mídia a seu favor por causa da fama negativa de seus clientes.KAKAY: O advogado criminal tem de ter cuidado para não ser confundido com os clientes. Quando o índio Caldino foi queimado em Brasilia, eu estava na fazenda com meus filhos — que na época tinham 8 e 6 anos —, e o mais novo me pediu: "Pai, esse daí, não pega não. Na escola, não tem como eu falar que você está defendendo esses meninos". Eu quase morri de susto.
PODER: Seus filhos se sentiam pressionados?KAKAY: Eu não diria pressão, mas, na visão maniqueísta infantil, você está defendendo o inimigo público. Ontem à noite, eu estava num café com o [artista plástico] Vik Muniz e umas pessoas que conheço pouco, quando a esposa do Cacciola foi à mesa me cumprimentar. Uma delas disse: ''Você conhece esse povo?". Eu vejo que tem um grau de espanto. Há uma rotulação, mas, com dois minutos de conversa, eu mudo a visão das pessoas sobre mim. A sociedade se porta como num jogo de máscaras. A pessoa está em casa com dificuldades e vê no Jornal Nacional alguém poderoso sendo preso. Ela tem uma felicidade íntima inexplicável. Ela veste a máscara da hipocrisia e não quer saber se preservaram os direitos constitucionais. Mas, se o mesmo acontece com ela ou um familiar, veste a máscara do devido processo legal. Tem histórias de injustiça inacreditáveis, como o caso Cacciola [banqueiro acusado de ter acesso a dados sigilosos do Banco Central). Eu tenho absoluta convicção de que ele não tinha informação privilegiada, tanto que quebrou.
PODER: Foi o senhor que conseguiu a liminar que libertou Cacciola e o possibilitou ir para Itália?KAKAY: Quando ele foi para Itália, eu saí do caso. Ele não fugiu, estava em liberdade e tinha o direito de ir. Mas existia um barulho de que ele fugiria se fosse solto e, de certa forma, eu emprestei a minha credibilidade. E ele foi, sem me avisar. Então, disse a ele que não continuaria no caso. E ainda falei: "Alberto, não vá nem ao Vaticano".
PODER: O banqueiro Daniel Dantas, seu cliente, se beneficiou da incompetência da Polícia Federal?KAKAY: Ali não foi incompetência, foi um erro doloso. Nós advogados ganhamos muito em cima do que não é bem feito:o pela polícia e com os erros do Ministério Público. Alguns abusam, com um autoritarismo inacreditável. Sabe o que é pedir o sigilo bancário de dez pessoas que estão sendo investigadas e colocar na lista mais uma pessoa que não era investigada, como aconteceu com O Eduardo Jorge? Isso é crime e tem de ser punido exemplarmente. Sou contra o Ministério Público investigar, porque escolhem as provas para fazer a acusação. É uma coisa grave que acontece também com os juízes dos tribunais superiores. Por exemplo, no caso do Paulo Medina [ministro do STJ acusado de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis], durante a investigação, várias medidas foram concedidas pelo ministro Cezar Peluso [do STF]. No julgamento, eu levantei várias liminares contra essas medidas e o próprio Peluso as defendeu porque eram dele.
PODER: Não existe a isenção do juiz?KAKAY: Não existe. Num processo criminal que mobiliza o país não tem isenção.
PODER: O senhor discorda do ministro José Antonio Dias Toffoli, que disse em recente entrevista para PODER que as decisões do juiz não são subjetivas?KAKAY: O ministro tem obrigação de dizer isso sabendo que não é verdade. Eu sempre digo aos meus clientes: "O juiz é humano e se ele vai julgar um caso que a imprensa está massacrando, vai ter influência". A mulher, a filha, os amigos dele vão comentar.
PODER: Então, já que o presidente Lula indicou oito ministros paro o STF, temos um Supremo parcial?KAKAY: Não, Lula indicou ministro que ele mal conhecia, como Joaquim Barbosa. Quando digo que o juiz não é insensível, não quer dizer que ele seja partidário.
PODER: E no caso de Toffoli, que foi advogado de Lula?KAKAY: É a mesma coisa do Gilmar [Mendes], que era ligadíssimo ao Fernando Henrique, e hoje é um dos melhores ministros do Supremo. Gilmar não é imparcial, mas a parcialidade dele é positiva: ele briga fortemente a favor da liberdade de imprensa e foi contra o momento policialesco do Brasil. Ele é o Toffoli do Fernando Henrique. E se o Toffoli for nessa linha estará muito bem.
PODER: Que tal viver em Brasília?KAKAY: Tem uma qualidade de vida fantástica, mas a proximidade do poder afeta algumas pessoas. A Brasília do poder é uma ficção. É como ir a Los Angeles e achar que é celebridade e que vai jantar com a Julia Roberts.

Legislação penal endureceu nos últimos 20 anosmPor Mariana Ghirello

Durante a campanha eleitoral, é comum ouvir promessas e garantias de maior segurança para a população. E quando os candidatos chegam ao poder as afirmações genéricas ganham corpo, quase sempre, na alteração da legislação penal. Na tese Crime e Congresso Nacional: uma análise da Política Criminal aprovada de 1989 a 2006, o cientista político Marcelo da Silveira Campos faz um exame aprofundado das legislações penais aprovadas ao longo deste período e a conclusão é de que a solução encontrada pelos parlamentares é aumentar as penas e criminalizar novas condutas.
Do total de leis avaliadas, 20 são mais punitivas em relação ao dispositivo anterior revogado e 19 delas criminalizam novas condutas. Dez reorganizam a segurança pública e quatro tratam de novas atribuições de organizações de repressão penal nos espaços públicos. Em sentido contrário, apenas dez delas cuidam das garantias dos direitos fundamentais dos acusados. E duas concedem privilégios a grupos específicos, prisão especial para militares e a prerrogativa de foro. Dez delas são leis mistas.
Campos também comparou a produção legislativa durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva. Nos oito anos de governo tucano, 48 leis que versam sobre o assunto foram sancionadas. Na administração petista, foram 19.
O maior número de leis corresponde à maior bancada, formada pelo PMDB, PT, PSDB e PFL (atual DEM), que juntos propuseram 27 leis sobre políticas criminais. Das 84 analisadas, 40 foram propostas por parlamentares, as outras 44 são de autoria do Congresso Nacional.
Entre as normas mais severas está a Lei dos Crimes Hediondos, Lei 8.072 de 1990, que sofreu emendas por duas vezes para aumentar o número de crimes considerados hediondos. O autor da pesquisa destaca que uma dessas modificações foi influenciada pelo assassinato da atriz Daniela Perez por Guilherme de Pádua, crime que causou grande comoção nacional.
O assassinato, em 2003, do jovem casal de namorados Liana Friedenbach e Felipe Caffé pelo menor conhecido como Champinha e, mais recentemente, a morte do menino João Hélio depois de um assalto que teve a participação de um menor de idade foram dois episódios que levaram ao Congresso propostas de redução da maioridade penal.
O pesquisador destaca que o latrocínio, roubo que teve como consequência do emprego da violência a morte da vítima, aumentou de reclusão de 15 anos para 20 no mínimo. A extorsão mediante sequestro, uma das modalidades de sequestro relâmpago, tinha pena mínima de 8 anos e passou para 12 anos. Estupro e atentado violento ao pudor também tiveram acréscimo nas penas, 10 anos no máximo.
Para o autor da tese, a Lei dos Crimes Hediondos é um exemplo de como o Estado enfrenta a criminalidade. “A crença do Legislativo é semelhante à crença da teoria da escolha racional, na qual dissuasão e inabilitação seriam mecanismos eficientes de controle da criminalidade”, explica.
Também teve atenção especial do legislador a violação dos Direitos Autorais, através da Lei 10.695, de 2003. Campos sugere se o crime de reprodução total ou parcial com intuito de lucro, a pirataria, poderia ser tratado de forma diferente. “Há que se questionar se a questão da Violação de Direitos Autorais deve ser tratada sob a ótica do aumento da pena mínima de reclusão e se tal questão não poderia ser tratada como ilícito civil, por exemplo, ao invés da escolha do aumento do quantum punitivo”, observa.
A Lei 8.137/90, que trata dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, além de criar novos tipos penais causou confusão porque pode ser tratada no âmbito administrativo, judicial e tributário.
Outra lei de boa intenção, mas que causou conflitos foi a 11.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha. Segundo o autor, ela leva para o Direito Penal questões relativas a violência de gênero que poderiam ser tratadas em Direitos Humanos. “Assim, o processo de despenalização que era estabelecido perante os Juizados Especiais Criminais nos casos de violência contra a mulher foi subtraído e a penalização-criminalização foi introduzida na legislação ao reestabelecer penas de até três anos de reclusão para o agressor”, assevera.
Partidos políticosDiferentemente do senso comum, não há como fazer uma diferenciação clara da linha de raciocínio dos partidos por sua classificação ideológica: centro, esquerda e direita. Quantitativamente, os partidos com maior bancada sugerem e aprovam mais leis. Mas, não criam necessariamente uma identidade por tipos de lei.
Ao analisar qualitativamente as leis por partido, o autor identificou que as normas mais punitivas tiveram origem em partidos de direita, como a Lei dos Crimes Hediondos do senador Odacir Soares (PFL-RO, hoje DEM). O cientista destaca também que o tempo de tramitação da lei foi muito curto considerando o rigor punitivo, apenas 68 dias entre a apresentação e sanção.
A lei que considera como crime hediondo todos os crimes contra a saúde pública, 9.677/98, também partiu de um parlamentar da direita, o deputado Benedito Domingos (PPB-DF, atual PP). A agilidade para aprovar esta lei também impressiona: foram 118 dias. Para comprovar que o tempo entre apresentação e sanção é curto, o autor explica que a Lei das Penas Alternativas (Lei 9.714/98), por exemplo, demorou 695 dias.
Estado PenalDe acordo com o autor, a análise das legislações demonstra que as medidas tomadas pelo Legislativo se concentram em suprimir os criminosos da sociedade com a pena de prisão. “Ou seja, a prisão não é mais definida e utilizada necessariamente como modo de reabilitação do delinquente, mas como eliminação dos criminosos, de modo que se caracteriza esse fenômeno como recrudescimento penal”, explica.
Marcelo da Silveira Campos aponta que a sociedade chega ao ponto de desconsiderar que o criminoso é um cidadão porque ele cometeu um crime. E passa-se a dividir a sociedade em “nós” e os “outros”. “A opção é que estes estejam submetidos a maiores restrições do que expor os cidadãos ‘de bem’ aos riscos”, endossa.
O autor afirma também que a punição com prisão é uma visão simplificada das questões sociais, e ainda visa atender a opinião que deseja viver em um ambiente livre de criminosos.
O problema dessa política de segurança pública é o aumento significativo da população carcerária, e a degradação das prisões. De acordo com dados apresentados pelo autor, em 1999, o Brasil tinha 194 mil presos e dez anos depois o número sobe para quase 500 mil presos, segundo o Ministério da Justiça. Atualmente, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo.
Levantamento do Conselho Nacional de Justiça informa que a taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 1,65 preso por vaga, o que deixa o país atrás apenas da Bolívia, cuja taxa é de 1,66. São Paulo é o estado com maior quantidade de encarcerados, seguido de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Tráfico de drogas e possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos

EMEN­TA -­ Ha­beas cor­pus. Trá­fi­co de dro­gas. Cri­me pra­ti­ca­do na vi­gên­cia das Leis n.ºs 11.343/06 e 11.464/07. Es­ta­be­le­ci­men­to de re­gi­me pri­sio­nal di­ver­so do fe­cha­do. Pos­si­bi­li­da­de. Re­pri­men­da in­fe­rior a qua­tro anos, re­co­nhe­ci­men­to de pri­ma­rie­da­de e au­sên­cia de cir­cuns­tân­cias ju­di­ciais des­fa­vo­rá­veis. Co­man­do le­gal que de­ve ser com­pa­ti­bi­li­za­do com os prin­cí­pios da in­di­vi­dua­li­za­ção da pe­na e pro­por­cio­na­li­da­de. Subs­ti­tui­ção da san­ção cor­po­ral por res­tri­ti­vas de di­rei­tos. via­bi­li­da­de. Pre­ce­den­tes do STJ e STF. Or­dem con­ce­di­da.
1. Con­si­de­ran­do a quan­ti­da­de de pe­na apli­ca­da -­ 1 ano e 8 me­ses de re­clu­são -­, re­co­nhe­ci­da a pri­ma­rie­da­de do réu e fi­xa­da a pena-­base no mí­ni­mo le­gal em ra­zão das fa­vo­rá­veis cir­cuns­tân­cias ju­di­ciais, é de ri­gor, respeitando-­se o prin­cí­pio da in­di­vi­dua­li­za­ção da pe­na, que a re­pri­men­da cor­po­ral se­ja cum­pri­da no re­gi­me aber­to, vis­to que não su­pe­ra 4 anos, não ten­do lu­gar a apli­ca­ção li­te­ral do dis­po­si­ti­vo in­se­ri­do na lei de Cri­mes he­dion­dos, eis que alheia às par­ti­cu­la­ri­da­des do ca­so con­cre­to, con­soan­te vem sen­do de­ci­di­do pe­la Sex­ta Tur­ma des­ta Cor­te.
2. Mui­to em­bo­ra, em mo­men­to an­te­rior, a Cor­te Es­pe­cial des­te Tri­bu­nal te­nha re­jei­ta­do a Ar­gui­ção de In­cons­ti­tu­cio­na­li­da­de no HC nº 120.353/SP, a par­tir do jul­ga­men­to do HC n.º 118.776/RS (ses­são de 18/3/2010 acór­dão pen­den­te de pu­bli­ca­ção), es­ta Sex­ta Tur­ma vem re­co­nhe­cen­do a pos­si­bi­li­da­de de de­fe­ri­men­to do be­ne­fí­cio da subs­ti­tui­ção da pe­na pri­va­ti­va de li­ber­da­de por res­tri­ti­va de di­rei­tos aos con­de­na­dos por de­li­to de trá­fi­co co­me­ti­do sob a égi­de da No­va de Dro­gas. Es­se en­ten­di­men­to foi con­fir­ma­do no jul­ga­men­to do HC 149.807/SP, rea­li­za­do no dia 6 de maio de 2010 (In­for­ma­ti­vo nº 433/STJ).
3. Ha­beas cor­pus con­ce­di­do pa­ra es­ta­be­le­cer o re­gi­me aber­to pa­ra o cum­pri­men­to da pri­va­ti­va de li­ber­da­de e substituí-­la por duas res­tri­ti­vas de di­rei­tos, a se­rem de­fi­ni­das no Juí­zo da Exe­cu­ção.
(STJ/DJe de 16/08/2010)

Roubo ou furto: momento consumativo e populismo penal por Luiz Flávio Gomes

A Quin­ta Tur­ma do Su­pe­rior Tri­bu­nal de Jus­ti­ça (STJ) au­men­tou a pe­na apli­ca­da a dois con­de­na­dos em Por­to Ale­gre por en­ten­der que o rou­bo se con­su­ma tão lo­go o in­fra­tor se apo­de­ra do bem (teo­ria da "a­pre­hen­cio") (STJ, REsp 1.184.444/RS, Quin­ta Tur­ma, rel. Min. Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma, j. 17/06/2010).
Se­gun­do no­tí­cia pu­bli­ca­da no si­te do STJ em 9 de ju­lho de 2010:
Rou­bo se con­su­ma tão lo­go in­fra­tor se apo­de­ra do bem
(...) os dois in­fra­to­res, acom­pa­nha­dos de um ado­les­cen­te, sub­traí­ram te­le­fo­nes ce­lu­la­res, re­ló­gio de pul­so, cor­ren­te e anel de pra­ta de três ví­ti­mas que ca­mi­nha­vam nu­ma via pú­bli­ca da ca­pi­tal gaú­cha, além de cer­ta quan­tia em di­nhei­ro.
Na oca­sião, M. A. aproximou-­se das ví­ti­mas em­pu­nhan­do uma fa­ca e, em tom de amea­ça, or­de­nou que lhe pas­sas­sem to­do o di­nhei­ro que le­va­vam con­si­go. Ato con­tí­nuo, U. e o cúm­pli­ce ado­les­cen­te aproximaram-­se e, rei­te­ran­do as amea­ças, exi­gi­ram que os ofen­di­dos lhes en­tre­gas­sem tam­bém seus per­ten­ces. Lo­go após se apo­de­ra­rem dos bens, os in­fra­to­res fu­gi­ram do lo­cal.
A ocor­rên­cia foi re­gis­tra­da por po­li­ciais mi­li­ta­res que, du­ran­te pa­tru­lha­men­to ro­ti­nei­ro, avis­ta­ram as ví­ti­mas pe­din­do au­xí­lio. Uma de­las acom­pa­nhou os po­li­ciais na ten­ta­ti­va de lo­ca­li­zar os in­fra­to­res nas pro­xi­mi­da­des do lu­gar on­de tu­do ocor­reu.
Com o êxi­to da ini­cia­ti­va, foi da­da voz de pri­são aos dois maio­res de ida­de, dez mi­nu­tos de­pois de con­so­li­da­do o cri­me. A res sub­traí­da, ava­lia­da em R$ 1.230, foi ime­dia­ta­men­te re­cu­pe­ra­da e de­vol­vi­da aos pro­prie­tá­rios.
Da no­tí­cia ain­da des­ta­ca­mos:
(...) M.A. e U. fo­ram con­de­na­dos pe­lo Tri­bu­nal de Jus­ti­ça es­ta­dual (TJRS) à pe­na de 4 anos, 10 me­ses e 20 dias de re­clu­são, em re­gi­me ini­cial fe­cha­do, além do pa­ga­men­to de 20 dias-­multa pe­la prá­ti­ca de de­li­to pre­vis­to no ar­ti­go 157, pa­rá­gra­fo 2.º, do Có­di­go Pe­nal.
O ór­gão, no en­tan­to, aco­lheu a te­se de que se tra­ta­va de "de­li­to de for­ma ten­ta­da", co­mo pe­diu a De­fen­so­ria Pú­bli­ca. E jus­ti­fi­cou a de­ci­são sob o fun­da­men­to de que, em­bo­ra os ob­je­tos te­nham si­do sub­traí­dos me­dian­te amea­ça, o rou­bo não te­ria se con­su­ma­do, já que os acu­sa­dos fo­ram pre­sos lo­go após o cri­me, e os bens fo­ram in­te­gral­men­te res­ti­tuí­dos aos le­gí­ti­mos do­nos.
(...) Con­tra­ria­do, o MPRS re­cor­reu ao STJ, so­li­ci­tan­do o de­vi­do au­men­to da pe­na. O pe­di­do foi de­fe­ri­do pe­la Quin­ta Tur­ma do Tri­bu­nal. Pa­ra o mi­nis­tro Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma, re­la­tor do re­cur­so es­pe­cial, o bem rou­ba­do não pre­ci­sa ter saí­do do cam­po de vi­são da ví­ti­ma pa­ra a con­su­ma­ção do cri­me.
Es­te se ca­rac­te­ri­za ain­da que o bem se­ja re­cu­pe­ra­do em se­gui­da por seu pro­prie­tá­rio. "A con­su­ma­ção do rou­bo ocor­re no mo­men­to em que o agen­te se tor­na pos­sui­dor da res sub­traí­da me­dian­te gra­ve amea­ça ou vio­lên­cia, sen­do ir­re­le­van­te que a coi­sa saia de es­fe­ra de vi­gi­lân­cia da ví­ti­ma", afir­mou.
Com es­se en­ten­di­men­to, Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma de­ter­mi­nou que a pe­na de M.A. e U. fos­se re­di­men­sio­na­da pa­ra 7 anos e 4 me­ses de re­clu­são. O ma­gis­tra­do de­ci­diu, ain­da, que a pri­são se­ja cum­pri­da em re­gi­me ini­cial fe­cha­do, em ra­zão dos maus an­te­ce­den­tes dos réus.
Am­bos são rein­ci­den­tes, ten­do si­do con­de­na­dos pe­la prá­ti­ca de de­li­tos an­te­rio­res. O vo­to con­soan­te com pa­re­cer do Mi­nis­té­rio Pú­bli­co Fe­de­ral, fa­vo­rá­vel ao pro­vi­men­to do re­cur­so foi se­gui­do de for­ma unâ­ni­me pe­los de­mais mi­nis­tros da Tur­ma(1).
Fon­te: www.stj.gov.br, 09 jul. 2010.
Ro­gé­rio San­ches Cu­nha des­ta­ca que no cri­me de rou­bo tutela-­se o pa­tri­mô­nio e a li­ber­da­de in­di­vi­dual da ví­ti­ma(2).
Gui­lher­me de Sou­za Nuc­ci(3) re­cor­da que, por tratar-­se de cri­me ma­te­rial, é im­pres­cin­dí­vel que o bem se­ja to­ma­do do ofen­di­do, es­tan­do em pos­se man­sa e tran­qui­la do agen­te, e con­clui: se "hou­ver per­se­gui­ção e em mo­men­to al­gum con­se­guir o au­tor a li­vre dis­po­si­ção da coi­sa, trata-­se de ten­ta­ti­va".
Em jul­ga­men­to an­te­rior a Quin­ta Tur­ma do STJ já ha­via se pro­nun­cia­do no mes­mo sen­ti­do (REsp 1.098.759/RS)(4).
Idên­ti­ca po­si­ção ado­tou a Sex­ta Tur­ma do STJ. Da emen­ta do REsp 1.098.857/RS(5) trans­cre­ve­mos:
Ade­mais, con­for­me orien­ta­ção fir­ma­da pe­lo Su­pe­rior Tri­bu­nal de Jus­ti­ça, considera-­se con­su­ma­do o cri­me de rou­bo, as­sim co­mo o de fur­to, no mo­men­to em que o agen­te se tor­na pos­sui­dor da coi­sa alheia mó­vel, ain­da que não ob­te­nha a pos­se tran­qüi­la, sen­do pres­cin­dí­vel que o ob­je­to sub­traí­do saia da es­fe­ra de vi­gi­lân­cia da ví­ti­ma pa­ra a ca­rac­te­ri­za­ção do ilí­ci­to.
A Pri­mei­ra Tur­ma do Su­pre­mo Tri­bu­nal Fe­de­ral tam­bém já se ma­ni­fes­tou no mes­mo sen­ti­do. Da emen­ta do HC 95.998/SP(6) des­ta­ca­mos:
1. É de se con­si­de­rar con­su­ma­do o rou­bo quan­do o agen­te, ces­sa­da a vio­lên­cia ou a gra­ve amea­ça, in­ver­te a pos­se da coi­sa sub­traí­da. Des­ne­ces­sá­rio que o bem ob­je­to do de­li­to saia da es­fe­ra de vi­gi­lân­cia da ví­ti­ma.
O sim­ples fa­to de a ví­ti­ma co­mu­ni­car ime­dia­ta­men­te o ocor­ri­do à po­lí­cia, com a res­pec­ti­va cap­tu­ra do acu­sa­do nas pro­xi­mi­da­des do lo­cal do cri­me, não des­ca­rac­te­ri­za a con­su­ma­ção do de­li­to.
Tec­ni­ca­men­te o ca­so des­cri­to (sub­tra­ção e ime­dia­ta per­se­gui­ção, sem ter ha­vi­do pos­se tran­qüi­la) cons­ti­tui rou­bo ten­ta­do. Em vir­tu­de de di­re­tri­zes ideo­ló­gi­cas concluiu-­se pe­la con­su­ma­ção.
Sem pos­se tran­qüi­la (do bem sub­traí­do) ja­mais se po­de afir­mar a con­su­ma­ção (ma­te­rial) do rou­bo, que exi­ge le­são efe­ti­va do bem ju­rí­di­co tu­te­la­do pe­la nor­ma pe­nal. Co­mo é pos­sí­vel con­si­de­rar um cri­me con­su­ma­do sem ter se com­ple­ta­do a le­são ao bem ju­rí­di­co pro­te­gi­do?
Vá­rias são as teo­rias so­bre a con­su­ma­ção (do rou­bo e do fur­to):
a) teo­ria da "a­pre­hen­cio rei": bas­ta que se co­lo­que a mão na coi­sa (que se pe­gue a coi­sa) e o de­li­to já se con­su­ma­ria. É uma teo­ria exa­ge­ra­da e equi­vo­ca­da por­que a con­su­ma­ção exi­ge a efe­ti­va le­são ao bem ju­rí­di­co;
b) teo­ria da "mot­tio": bas­ta­ria a re­mo­ção da coi­sa, o seu des­lo­ca­men­to, pa­ra a con­su­ma­ção do cri­me. Quem ad­mi­te que a me­ra "mot­tio" (re­mo­ção) já se­ria su­fi­cien­te pa­ra a con­su­ma­ção do fur­to ou rou­bo tam­bém se equi­vo­ca (por­que aí ain­da não te­mos a le­são ao bem ju­rí­di­co);
c) teo­ria da "a­bla­tio": a con­su­ma­ção exi­gi­ria a re­mo­ção as­sim co­mo um efe­ti­vo uso da coi­sa, o iní­cio da ven­da coi­sa etc. Tam­bém é uma teo­ria equi­vo­ca­da por­que an­tes da ven­da, do con­su­mo etc. já po­de ter ha­vi­do con­su­ma­ção do cri­me;
d) teo­ria da "lo­tu ple­ta­tio": a con­su­ma­ção exi­gi­ria a efe­ti­va dis­po­si­ção (ven­da) da coi­sa (me­re­ce a mes­ma crí­ti­ca da teo­ria an­te­rior);
e) teo­ria da dis­po­ni­bi­li­da­de: o su­jei­to tem a pos­se tran­qui­la da coi­sa e de­la se apo­de­ra, ou se­ja, tem sua to­tal e tran­qui­la dis­po­ni­bi­li­da­de. O su­jei­to tem a dis­po­ni­bi­li­da­de da coi­sa quan­do po­de di­zer "pos­so usu­fruir, pos­so ven­der, pos­so con­su­mir a coi­sa, es­tou li­vre pa­ra fa­zer tu­do is­so mas não que­ro".
A con­su­ma­ção do fur­to ou do rou­bo é o con­trá­rio da ten­ta­ti­va (em ge­ral) on­de o su­jei­to diz "que­ro con­su­mar, mas não con­si­go" (mas não pos­so). Na de­sis­tên­cia vo­lun­tá­ria ele diz "pos­so con­su­mar, mas não que­ro". No rou­bo ou no fur­to a con­su­ma­ção se dá quan­do o agen­te diz "pos­so usu­fruir, te­nho li­ber­da­de pa­ra is­so, es­tou tran­qui­lo com es­sa coi­sa, mas não que­ro nes­te mo­men­to".
Quem é sur­preen­di­do com a coi­sa quan­do es­tá cor­ren­do, quan­do es­tá es­ca­pan­do, quan­do es­tá dei­xan­do o lo­cal dos fa­tos, quan­do es­tá fu­gin­do, quan­do es­tá se es­qui­van­do da ví­ti­ma ou dos po­li­ciais, quan­do es­tá sen­do per­se­gui­do, quan­do es­tá se dis­tan­cian­do do lo­cal dos fa­tos etc. cla­ro que não tem a dis­po­ni­bi­li­da­de da "res" (da coi­sa), lo­go, es­ta­mos ain­da na es­fe­ra da ten­ta­ti­va.
To­tal­men­te equi­vo­ca­da (com a de­vi­da vê­nia) a de­ci­são da Quin­ta Tur­ma do STJ (STJ, REsp 1.184.444/RS, Quin­ta Tur­ma, rel. Min. Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma, j. 17/06/2010).
O fun­do ideo­ló­gi­co pu­ni­ti­vis­ta ou po­pu­lis­ta pe­nal (i­deo­lo­gia do ini­mi­go, que cons­ti­tui a ba­se do Di­rei­to pe­nal do ini­mi­go, que in­te­gra o po­pu­lis­mo pe­nal) es­tá mais do que evi­den­te.
Confundiu-­se cri­me ma­te­rial com cri­me for­mal, con­su­ma­ção for­mal com con­su­ma­ção ma­te­rial, cri­me de le­são com cri­me de pe­ri­go. Con­cei­tos dog­má­ti­cos (técnico-­jurídicos) ele­men­ta­res fo­ram me­nos­pre­za­dos na de­ci­são.
Em vir­tu­de do pre­con­cei­to ideo­ló­gi­co, re­sul­ta­ram atro­pe­la­dos con­cei­tos es­sen­ciais do Di­rei­to pe­nal. A ideo­lo­gia (do ini­mi­go) ge­ra, mui­tas ve­zes, ver­da­dei­ro eclip­se da ciên­cia (pe­nal), nu­ma es­pé­cie de obs­cu­ri­da­de vo­lun­tá­ria, re­sul­tan­te da dis­tor­ção de con­cei­tos.
O pior ce­go, tam­bém quan­do se tra­ta do po­der pu­ni­ti­vo do Es­ta­do, é o que não quer en­xer­gar. Sa­be que tec­ni­ca­men­te es­tá er­ra­do, mas não tem pre­dis­po­si­ção pa­ra su­pe­rar seus pre­juí­zos (pré-­juízos) ideo­ló­gi­cos.
Quan­do se con­su­ma o de­li­to de rou­bo (pró­prio)? Ora, cui­dan­do de de­li­to ma­te­rial (que exi­ge re­sul­ta­do na­tu­ra­lís­ti­co pa­ra a con­su­ma­ção), pa­re­ce evi­den­te afir­mar que o rou­bo pró­prio consuma-­se no mo­men­to em que ocor­re a le­são pa­tri­mo­nial.
Não se tra­ta de cri­me de pe­ri­go (que se con­su­ma­ria com o sim­ples des­va­lor da con­du­ta do­ta­da de pe­ri­cu­lo­si­da­de pa­ra o bem ju­rí­di­co). Não se tra­ta de cri­me for­mal (que tam­bém se con­su­ma­ria com o sim­ples des­va­lor da con­du­ta). Não se po­de nun­ca con­fun­dir o rou­bo (CP, art. 157) com a ex­tor­são (CP, art. 158).
Sob o en­fo­que na­tu­ra­lís­ti­co a ex­tor­são é cri­me for­mal (não ne­ces­si­ta de re­sul­ta­do na­tu­ra­lís­ti­co pa­ra se con­su­mar). Sob o en­fo­que ju­rí­di­co a ex­tor­são é um cri­me de pe­ri­go (não se exi­ge le­são do bem ju­rí­di­co pa­tri­mo­nial, bas­ta seu efe­ti­vo ris­co). O rou­bo (dis­tin­ta­men­te) é cri­me ma­te­rial (e­xi­ge re­sul­ta­do na­tu­ra­lís­ti­co pa­ra se con­su­mar) e de le­são (e­xi­ge le­são efe­ti­va ao bem ju­rí­di­co pa­tri­mô­nio).
Con­clu­são: sem a efe­ti­va (real, con­cre­ta e com­pro­va­da) le­são pa­tri­mo­nial não há que se fa­lar em rou­bo (pró­prio) con­su­ma­do, que exi­ge des­va­lor da con­du­ta (con­du­ta pe­ri­go­sa pa­ra o bem ju­rí­di­co) mais des­va­lor do re­sul­ta­do (le­são pa­tri­mo­nial efe­ti­va).
En­quan­to o agen­te não tem a pos­se tran­qüi­la da coi­sa sub­traí­da (a sua dis­po­ni­bi­li­da­de) não há que se fa­lar em con­su­ma­ção, por­que ain­da não se con­cre­ti­zou o des­va­lor do re­sul­ta­do (a le­são).
Hou­ve um pe­río­do his­tó­ri­co em que a ju­ris­pru­dên­cia bra­si­lei­ra era pra­ti­ca­men­te unâ­ni­me (nes­sa ma­té­ria de con­su­ma­ção do rou­bo ou do fur­to) na ado­ção da teo­ria da dis­po­ni­bi­li­da­de (pos­se tran­qui­la da coi­sa).
Es­sa é a teo­ria cor­re­ta. Com o au­men­to da vio­lên­cia no nos­so país a ju­ris­pru­dên­cia foi se fle­xi­bi­li­zan­do. Da teo­ria da dis­po­ni­bi­li­da­de (pos­se tran­qui­la da res) passou-­se pa­ra a teo­ria da "mot­tio" (re­mo­ção) e ago­ra pa­ra a teo­ria da "a­pre­hen­cio".
A ju­ris­pru­dên­cia, na me­di­da em que a vio­lên­cia vai ex­plo­din­do, vai an­te­ci­pan­do o mo­men­to con­su­ma­ti­vo do fur­to ou do rou­bo. Com is­so pune-­se mais e prende-­se mais.
Quan­do es­te fe­nô­me­no acon­te­ce violando-­se a ló­gi­ca das coi­sas, a na­tu­re­za das coi­sas, menosprezando-­se ca­te­go­rias pe­nais já bas­tan­te es­tu­da­das (con­cei­tos de le­são e de pe­ri­go, de cri­me for­mal e ma­te­rial etc.), não há ne­nhu­ma dú­vi­da que es­ta­mos dian­te de mais uma ma­ni­fes­ta­ção do po­pu­lis­mo pe­nal (que con­ta com uma ideo­lo­gia bem de­fi­ni­da: pu­ni­ti­vis­mo e pe­ni­ten­cia­ris­mo ao ex­tre­mo, ain­da que se sai­ba que o pre­sí­dio não re­cu­pe­ra nin­guém).
No­tas:
(1) STJ, REsp 1.184.444/RS, Quin­ta Tur­ma, rel. Min. Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma, j. 17/06/2010.
(2) CU­NHA, Ro­gé­rio San­ches. Di­rei­to pe­nal: par­te es­pe­cial. 3.ª ed. São Pau­lo: RT, 2010, p. 141.
(3) NUC­CI, Gui­lher­me de Sou­za. Có­di­go pe­nal co­men­ta­do. 10.ª ed. São Pau­lo: RT, 2010, p. 734 e 755.
(4) STJ, REsp 1.098.759/RS, Quin­ta Tur­ma, rel. Min. Ar­nal­do Es­te­ves Li­ma, j. 11/05/2010, DJ 31/05/2010.
(5) STJ, REsp 1.098. 857/RS, Sex­ta Tur­ma, rel. Min. Og Fer­nan­des, j. 01/06/2010, DJe 28/06/2010.
[6] STF, HC 95.998-­9/SP, Pri­mei­ra Tur­ma, rel. Min. Car­los Brit­to, j. 12/05/2009, DJe 108, 12/06/2009.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.twitter.com/ProfessorLFG. www.blogdolfg.com.brPesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O silencio dos inocentes: STJ


ESPECIAL O silêncio dos inocentes: STJ define aplicação concreta da garantia contra autoincriminação
“Você tem o direito de ficar calado. Tudo o que disser pode e será usado contra você no tribunal.” A primeira parte do “Aviso de Miranda” é bastante conhecida, pelo uso rotineiro em filmes e seriados policiais norte-americanos. Mas os mesmos preceitos são válidos no Brasil, que os elevou a princípio constitucional. É o direito ao silêncio dos acusados por crimes. Esse conceito se consolidou na Inglaterra e servia de proteção contra perseguições religiosas pelo Estado. Segundo Carlos Henrique Haddad, até o século XVII prevalecia o sistema inquisitorial, que buscava a confissão do réu como prova máxima de culpa. A partir de 1640, no entanto, a garantia contra a autoincriminação tornou-se um direito reconhecido na “common law", disseminado a ponto de ser inserido na Constituição norte-americana décadas mais tarde. A mudança essencial foi transformar o interrogatório de meio de prova em meio de defesa – não deve visar à obtenção de confissão, mas sim dar oportunidade ao acusado de ser ouvido. No Brasil, a previsão constitucional é expressa. Diz o inciso LXIII do artigo 5º: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. A Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da Organização das Nações Unidas (ONU) seguem a mesma linha. Antes, já era reconhecido, e o Código de Processo Penal (CPP), de 1941, ainda em vigor, prevê tal proteção. Porém a abrandava, ao dispor que o juiz deveria informar ao réu que não estava obrigado a responder às perguntas, mas que seu silêncio poderia ser interpretado em prejuízo da defesa. O texto foi alterado em 2003, para fazer prevalecer o conteúdo real do princípio constitucional. Diz agora o CPP: “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” Na doutrina, o princípio é chamado de “nemo tenetur se detegere” ou princípio da não autoincriminação. Diversos casos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) definem os limites para o exercício desse direito fundamental, revelando sua essência e consequências efetivas. Bafômetro Um exemplo recente da aplicação do preceito diz respeito à Lei n. 11.705/08, conhecida como Lei Seca. Essa norma alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para estabelecer uma quantidade mínima e precisa de álcool no sangue a partir da qual se torna crime dirigir. Antes, o CTB previa apenas que o motorista expusesse outros a dano potencial em razão da influência da bebida ou outras substâncias. Não previa quantidade específica, mas exigia condução anormal do veículo. “Era possível, portanto, o exame de corpo de delito indireto ou supletivo ou, ainda, a prova testemunhal, sempre, evidentemente, que impossibilitado o exame direto”, afirma o ministro Og Fernandes em decisão da Sexta Turma de junho de 2010. Porém, recentemente, a Sexta Turma produziu precedente de que, com a nova redação, a dosagem etílica passou a integrar o tipo penal. Isto é, só se configura o delito com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue – que não pode ser presumida. Agora, só os testes do bafômetro ou de sangue podem atestar a embriaguez. E o motorista, conforme o princípio constitucional, não está obrigado a produzir tais provas (HC 166.377).

Pedido de absolvição feito pelo MP e princípio acusatório - vinculação do Magistrado

PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO FEITO PELO MP EM ALEGAÇÕES FINAIS. VINCULAÇÃO DO JUIZ. SISTEMA ACUSATÓRIO. ABSOLVIÇÃO DECRETADA.
Número do processo: 1.0024.05.702576-9/001(1)
Númeração Única: 7025769-06.2005.8.13.0024
Relator: ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO
Relator do Acórdão: ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO
Data do Julgamento: 13/10/2009
Data da Publicação: 27/10/2009
Inteiro Teor:
EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - ABSOLVIÇÃO DOS REUS DECRETADA - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - SISTEMA ACUSATÓRIO.
I - Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador.
II - O sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor.
III - Afirma-se que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório.
IV - A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N° 1.0024.05.702576-9/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - RECORRENTE(S): EMERSON RICARDO VALADARES DE OLIVEIRA - RECORRIDO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - CO-RÉU: RAMON GUSTAVO GONÇALVES DIAS - RELATOR: EXMO. SR. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM SUPERAR PRELIMINARES DA DEFESA E DAR PROVIMENTO, ESTENDENDO OS EFEITOS DO JULGADO AO CORRÉU RAMON GUSTAVO GONÇALVES DIAS.
Belo Horizonte, 13 de outubro de 2009.
DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO:
VOTO
1 - RELATÓRIO
Cuida-se de recurso em sentido estrito aviado por Emerson Ricardo Valadares de Oliveira visando a reforma da sentença que lhe pronunciou. Alega, em preliminar, nulidade do processo e, no mérito, a existência de legítima defesa (fls. 301/312).
Por seu turno, em contrarrazões recursais, a IRMP pugnou pela reforma da sentença de pronúncia (fls. 314/315).
O Magistrado de primeiro grau, chamado para o possível juízo de retratação, manteve a decisão combatida (fls. 317).
A Procuradoria-Geral de Justiça, instada a se manifestar no feito, opinou pela reforma da decisão (fls. 320/325).
É o relatório.
2 - CONHECIMENTO
Conheço do recurso em face do ajuste legal.
3 - PRELIMINAR
Levanta à Defesa nulidade do feito por cerceamento de defesa, seja por ausência de inquirição das testemunhas arroladas pelo recorrente, seja pela ausência de alegações finais defensivas.
Deixo de analisar as supracitadas teses, porquanto vislumbro, desde já, solução mais benéfica no mérito.
A SRA. DESª. MARIA CELESTE PORTO:
VOTO
De acordo.
O SR. DES. EDUARDO MACHADO:
VOTO
De acordo.
O SR. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO:
VOTO
4 - MÉRITO
No mérito, busca a Defesa o reconhecimento da legítima defesa e, consequentemente, a absolvição sumária do recorrente.
Neste ponto razão lhe assiste, é que ainda que não comprovada a legítima defesa, o que no meu entender não é o caso, a pronúncia de Emerson Ricardo Valadares seria inviável por uma razão bastante simples: em suas alegações finais, o Ministério Público pleiteou sua absolvição sumária.
É facilmente dedutível que a tese que passarei a acolher encontra, por parte daqueles que se debruçam sobre a infraconstitucionalidade e com ela se satisfazem, uma resposta pronta: o artigo 385 do Código de Processo Penal determina que "nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada". A "autorização" não se sustenta diante do sistema acusatório acolhido inequivocamente pela Constituição da República de 1988.
A idéia a ser desenvolvida pode ser assim exposta: o sistema acusatório sustenta-se no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor.
A sentença, provimento final, é uma construção racional que resulta dos argumentos desenvolvidos em contraditório pelos por ela afetados.
A partir dessas conclusões teóricas, afirma-se que, se o juiz condena (pronuncia) mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório.
Não é possível imaginar que o oferecimento da denúncia esgota e pereniza a pretensão acusatória. O pedido de absolvição em alegações finais, oportunidade da apresentação da argumentação acerca das provas produzidas, impõe a absolvição pelo julgador, vez que
equivale à retirada da acusação. Sem a dedução legítima da pretensão acusatória no momento destinado aos debates, o julgador não pode assumir o "espaço vazio" deixado pelo órgão acusador e acolher uma imputação não mais existente. Repito que há, na solução do art. 385 do Código de Processo Penal, violação à necessária separação entre as funções de julgar e acusar e também grave ofensa à garantia do contraditório, afinal, as provas não foram alvo de argumentação que pretendesse a condenação. O julgador extrairia seu convencimento, sobre a condenação, de suas próprias conclusões sobre as provas, sem qualquer atuação contraditória argumentativa do Ministério Público.
Cito as lições de Aury Lopes Jr. sobre o tema:
"O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e sem o seu pleno exercício, não abre-se a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém.
Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo.
(...)
Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a absurda regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o Juiz condenar ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do Princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou melhor ainda, pleno exercício da pretensão acusatória." (in Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional, Volume II, Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2009, p. 343).
Vê-se, portanto, que a vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, que atua sem provocação e não está, em seu convencimento, limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público.
Mais na doutrina sobre o tema:
"Como o contraditório é imperativo para validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentar que não tenham sido objeto de contraditório" (PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, p. 117).
Em sendo assim, absolvo sumariamente o recorrente.
Por ter o Ministério Público também manifestado pela absolvição do co-réu Ramon Gustavo Gonçalves Dias (não recorrente), por força do art. 580 do CPP, estendo-lhe os efeitos deste julgado e também o absolvo sumariamente.
5 - CONCLUSÃO
Com estas considerações, supero as duas preliminares defensivas e, no mérito, dou provimento ao recurso interposto por Emerson Ricardo para absolvê-la das imputações com fulcro no art. 415, IV, CPP, estendendo os efeitos do julgado ao co-réu não recorrente - art. 580 do CPP.
Expeça-se alvará de soltura se por al.
É como voto.
A SRª. DESª. MARIA CELESTE PORTO:
VOTO
Acompanho o culto Desembargador Relator no que concerne ao provimento dado ao recurso interposto por Emerson Ricardo para absolvê-lo das imputações, estendendo os efeitos do julgado ao co-réu não recorrente - art.580 do CPP.
Todavia, o faço por motivo diverso do voto condutor ora proferido.
É que o nobre colega, em brilhante voto que acaba de proferir entendeu por bem absolver o recorrente Emerson Ricardo Valadares de Oliveira, estendendo os efeitos da decisão ao co-réu não recorrente ao argumento de que o Ministério Público, em suas alegações finais teria pleiteado a sua absolvição sumária, tendo ficado, portanto, o julgador vinculado diante do sistema acusatório.
Entendo, entretanto, que, in casu, à absolvição do recorrente e também do co-réu não recorrente se fazem necessárias mas, por fundamento diverso, qual seja, o fato de terem os mesmos agido licitamente, amparados por uma causa de justificação, qual seja, a legítima defesa.
É que, de fato, não vislumbrei motivos para pronúncia do recorrente e do co-réu não recorrente já que em momento algum restou provado que eles agiram ilicitamente.
Analisando detidamente os autos, verifiquei que diante do caderno probatório existente, agiu o recorrente e o co-réu não recorrente amparados por uma causa de justificação diante de toda prova testemunhal colhida.
Entretanto, necessário se faz consignar que tenho me posicionado no sentido de que o julgador primevo pode sim proferir sentença condenatória ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, conforme preconiza o art.385 do Código de Processo Penal, senão vejamos:
Art. 385 - Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada
Com estas breves considerações, acompanho o voto condutor proferido pelo culto Desembargador Relator apenas ressaltando meu entendimento quanto à possibilidade do juiz primevo proferir édito condenatório mesmo quando o órgão ministerial tenha opinado pela absolvição.
É como voto.
O SR. DES. EDUARDO MACHADO:
VOTO
Acompanho o Relator e a Revisora.
SÚMULA : Superaram preliminares da defesa e deram provimento, estendendo os efeitos do julgado ao co-réu Ramon Gustavo Gonçalves Dias.
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

domingo, 10 de outubro de 2010

tipicidade e crimes fiscas

O Estado de São Paulo realiza a “Operação Olho na Placa”, desencadeada pelas autoridades estaduais paulistas, com o objetivo de identificar e localizar proprietários de veículos que fazem o licenciamento de seus veículos em outros Estados da federação cujo IPVA possui alíquota menor.
Tal discussão traz para o mundo jurídico questões de suma importância a serem debatidas, tais como: a) Há no caso a ocorrência de crime contra a ordem tributária (Lei 8.137/90) ou de crime de falsidade ideológica (Art. 299 CP)? b) Qual o Estado competente para julgar a demanda? c) Pode haver a instauração de inquérito policial antes do processo administrativo que apure o valor do tributo devido?
A jurisprudência do E. STJ disciplina sobre o tema da seguinte forma:
Crime contra a ordem tributária. Supressão ou redução de tributo. Imposto sobre propriedade de veículos automotores. Licenciamento. Unidade da Federação diversa.
1. O licenciamento de veículo em unidade da Federação que possua alíquota do imposto sobre propriedade de veículo automotor menor do que a alíquota em cujo Estado reside o proprietário do veículo, em vez de configurar o crime de falsidade ideológica – em razão da indicação de endereço falso –, caracteriza a supressão ou redução de tributo.
2. Em casos tais, a competência para processar e julgar infração dessa natureza é da Justiça do Estado contra o qual se praticou crime em detrimento do fisco. Ademais, a supressão ou redução de tributo é delito material, consumando-se no local em que ocorrido o prejuízo decorrente da infração, isto é, onde situado o erário que deixou de receber o tributo.
3. Conflito do qual se conheceu, declarando-se competente o suscitado. (CC 96.964/PR, Rel. Min. NILSON NAVES - grifei)
Há entendimento exarado pelos Tribunais que o delito praticado seria aquele definido no art. 1º da Lei nº 8.137/90, eis que o “crimen falsi” teria constituído meio para o cometimento do delito-fim.
Vejamos o artigo 1° da Lei 8.137/90:Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Desta forma, resolve-se o conflito aparente de normas pela aplicação do postulado da consunção, de tal modo que a vinculação entre a falsidade ideológica e a sonegação fiscal permitiria reconhecer a preponderância do delito contra a ordem tributária.
O STJ já decidiu:Imposto sobre propriedade de veículos automotores (supressão ou redução). Licenciamento (unidade da Federação diversa). Falsidade ideológica (descaracterização). Inquérito (extinção).
1. Em vez de configurar o crime de falsidade ideológica – em razão da indicação de endereço falso –, o licenciamento de automóvel em unidade da Federação que possua alíquota do imposto sobre propriedade de veículo automotor menor do que a alíquota em cujo Estado reside o proprietário do veículo caracteriza a supressão ou redução de tributo.
2. Ademais, em caso tal, se falsidade houvesse, estaria absorvida. Precedentes.
3. ‘Habeas corpus’ concedido para se extinguir o inquérito sem prejuízo de outro, se e quando oportuno. (HC 146.404/SP, Rel. Min. NILSON NAVES - grifei)
O reconhecimento da configuração do crime contra a ordem tributária (afastada a caracterização do delito de falsidade ideológica) torna pertinente a invocação, da Súmula Vinculante nº 24:
“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
Tal diretriz sumular, que possui eficácia vinculante, reflete orientação jurisprudencial predominante no Supremo Tribunal Federal.
Vejamos:HABEAS CORPUS’ – CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (LEI Nº 8.137/90, ART. 1º) – CRÉDITO TRIBUTÁRIO AINDA NÃO CONSTITUÍDO DEFINITIVAMENTE – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL AINDA EM CURSO QUANDO OFERECIDA A DENÚNCIA – AJUIZAMENTO PREMATURO DA AÇÃO PENAL – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE TIPICIDADE PENAL – RECONHECIMENTO DA CONFIGURAÇÃO DE CONDUTA TÍPICA SOMENTE POSSÍVEL APÓS A DEFINITIVA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO – INVIABILIDADE DA INSTAURAÇÃO DA PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SEDE DE INQUÉRITO POLICIAL, ENQUANTO A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NÃO SE REVESTIR DE DEFINITIVIDADE – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A ‘PERSECUTIO CRIMINIS’, SE INSTAURADO INQUÉRITO POLICIAL OU AJUIZADA AÇÃO PENAL ANTES DE ENCERRADO, EM CARÁTER DEFINITIVO, O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL – OCORRÊNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO, PORQUE DESTITUÍDA DE TIPICIDADE PENAL A CONDUTA OBJETO DE INVESTIGAÇÃO PELO PODER PÚBLICO – CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DOS ATOS PERSECUTÓRIOS – INVALIDAÇÃO, DESDE A ORIGEM, POR AUSÊNCIA DE FATO TÍPICO, DO PROCEDIMENTO JUDICIAL OU EXTRAJUDICIAL DE PERSECUÇÃO PENAL – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ‘HABEAS CORPUS’ CONHECIDO, EM PARTE, E, NESSA PARTE, DEFERIDO.
- Enquanto o crédito tributário não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. É que, até então, não havendo sido ainda reconhecida a exigibilidade do crédito tributário (‘an debeatur’) e determinado o respectivo valor (‘quantum debeatur’), estar-se-á diante de conduta absolutamente desvestida de tipicidade penal. (HC 85.047/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)
Desta forma, enquanto não encerrada na instância fiscal o respectivo procedimento administrativo, não se mostra possível a instauração de persecução penal nos delitos contra a ordem tributária.
Assim, revela-se juridicamente inviável a instauração de persecução penal, mesmo na fase investigatória, enquanto não se concluir, no órgão competente da administração tributária, o procedimento fiscal tendente a constituir, de modo definitivo, o crédito tributário.
Portanto, nos casos do cometimento do ilícito acima apontado, há impossibilidade jurídica de se adotar, contra o devedor, qualquer ato de persecução penal, seja na fase pré-processual (inquérito policial), seja na fase processual (persecutio criminis in judicio).