quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A liberdade de ação como eixo central da ação significativa de Tomás Salvador Vives Antón

Surge na Espanha, desde 1996, uma teoria interessante sobre a ação, chamada de “teoria significativa da ação” ou “ação significativa” de Vives Antón[1] dando um giro pragmático da filosofia de Wittgeinstein e na metodologia própria desenvolvida por Habermas, que avançam a partir da semiótica para uma estruturação do discurso pragmático da linguagem[2].

Desde essa perspectiva, a ação como significado atribuído socialmente – juridicamente – a certos movimentos corporais ou certa ausência deles, tende a se objetivar, a se definir com independência da intenção subjetiva, do mesmo modo que as palavras têm um significado objetivo, que não depende necessariamente da intenção com que foram pronunciadas. O autor (Vives) insiste na ideia de que não estamos perante processo físico algum, mas perante casos de interpretação da conduta pública, isto é, compreensão do seu sentido[3].

O direito só existe como forma de regulação de um controle social mínimo necessário à subsistência de uma sociedade. Logo, há um sentido, um “significado social” que é definitivamente axiológico, mas claramente pré-jurídico. E este “significado social” constitui o fato determinante da escolha das ações juridicamente relevantes.

Não se valora a ação propriamente dita, mas o significado que ela produz socialmente, seu significado, seu sentido.

No âmbito do Direito Penal, cumpre considerar a conduta em seu aspecto global, não como ato isolado, mas como um conjunto de atos sucessivos, cuja ordenação produz a ação. Ou seja, em realidade o que se faz é tentar uma compreensão humanista do fenômeno da ação através da consideração em seu âmbito do contexto geral onde tem lugar o fato que se põe à apreciação do Direito Penal[4].

Exemplifica Muñoz Conde, que, no caso do condutor de um veículo que imprudentemente faz uma ultrapassagem em local proibido e, ao fazê-lo, larga o volante para tirar um inseto que lhe picou o rosto, subitamente perdendo o controle de seu conduzido, provocando um acidente, o relevante é a ação de conduzir como um todo e não o ato reflexo involuntário de mover a mão, que é tão somente uma parte da ação global[5].

Para o professor espanhol a ação deve ser entendida não sobre algo que os homens fazem, senão o significado do que fazem. Não o substrato de um sentido, mas o sentido de um substrato[6], dentro do contexto do acontecimento.

Em relação à norma, Vives parte de uma exigência dupla, norma como decisão de poder e de determinação da razão, no sentido de limitá-la por uma argumentação racional, uma pretensão de justiça[7].

Então estrutura seu modelo significativo na teoria do delito, na pretensão de validez da norma, mas esta pretensão não nasce, simplesmente da norma, mas que esta norma seja racionalmente fundamentada.

Neste sistema de ação, a liberdade de ação ocupa papel central, como ponto de intersecção entre a teoria da ação e a teoria da norma[8].

O sentido da ação somente é percebido a partir de regras sociais. “Para que tenha cabimento falar de regras e de seguir as regras, é imprescindível partir da ideia de liberdade[9]

Vives esclarece a questão ao mencionar:

“o ato de seguir regras implica captação do sentido e, por conseguinte, determinação conforme o sentido, não determinação causal. As regras são muito diferentes das leis da natureza: pois uma regra pode ser seguida corretamente ou resultar infringida enquanto que uma lei da natureza deixa de ser tal se os fatos não se adaptam a ela. A pergunta sobre como posso seguir uma regra não é uma pergunta a respeito das causas, mas das razões que guiam minha conduta e pressupõe que posso determinar-me por elas – ou seja, pressupõe a liberdade de ação que realizo ao falar”[10].

Assim a liberdade de ação é o fundamento da ação, o pressuposto necessário para compreender a existência de uma conduta.

O tema produz reflexo direto na questão chave discutida atualmente na chamada “crise da culpabilidade”, entre determinismo e livre arbítrio. O tema é posto em seu devido lugar, pois obviamente não é possível pretender a demonstração específica do determinismo nem mesmo cabe “provar” o livre arbítrio. Partindo da compreensão de que a liberdade de ação é um pressuposto da lógica da compreensão da validade da norma em face da ação, percebe-se que o erro não esteve jamais nas respostas dadas pela doutrina e sim na má colocação da pergunta. A questão da liberdade de ação é fundamento da existência da própria ação como tal e não da culpabilidade. Sem a liberdade, sequer a ação pode ser considerada como tal[11].

Vê-se que Vives subtrai a discussão clássica da culpabilidade para transportá-la para o âmbito central da própria ação significativa, vez que a ação não é o processo causal e sim o significado desse processo causal, seu sentido.

Justamente por constituir um significado de livre eleição, a ação justifica o seu controle por normas, então a liberdade de ação é o eixo central da organização do sistema penal.

Essa mudança de perspectiva tem efeito direito na reorganização das categorias do delito. Nessa quadra, o professor Vives, não rechaça o modelo tradicional de delito conhecido, propondo tão só um cambio de perspectivas de sua composição[12].

Indubitavelmente não quer dizer com isso que sempre há liberdade de ação. Obviamente, existem situações que alguém é completamente condicionado a produzir causalmente algo, porém, neste caso, certamente não será possível reconhecer que tenha atuado[13]. Para que se possa falar de regência de ações através de normas (pretensão de todo o direito e, como tal, do direito penal) é necessário assumir como pressuposto que o homem possa autodeterminar-se através de suas próprias razões, ou seja, onde existe ação existe liberdade de agir[14].

Ora, qual sentido de uma ação manifestamente condicionada por alguém? Para Vives seria um mero acontecimento causal sem significado, não se podendo atribuir responsabilidade penal, sequer conceber o mero acontecimento como ação.

Concluindo, vê-se que o modelo proposta se coaduna com as exigências humanistas, vez que preserva o normativismo bem como o eixo antropológico ao centralizar a questão da responsabilidade no modo pelo qual as pessoas agem, e reconhece “a pessoa capaz de liberdade e não como mero elemento da natureza, como ser racional que participa da vida social e não como componente físico objeto de estudo por leis universais”[15].

Leonardo Lobo de Andrade Vianna, advogado e doutorando pela Universidade de Buenos Aires – UBA.



[1] VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996.

[2] BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Lumen Juris, 2011, p. 196.

[3] BORJA JIMÉNEZ, Emiliano. Algunas reflexiones sobre el objeto, el sistema y la función del Derecho penal. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha,Ediciones de la Universidad de Salamanca, 2001, p. 884, nota n. 71.

[4] VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... cit. p. 181.

[5] MUÑOZ CONDE, Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal y control social. Jerez: Fundación Universitaria de Jerez, 1985, p. 246-248.

[6] VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos..., cit., p.205.

[7] Este valor de Justiça como “segurança jurídica, liberdade, eficácia e utilidade” idem, p. 482.

[8] MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico y de la empresa...p. 56.

[9] MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico y de la empresa...p. 56.

[10] VIVES ANTÓN, Tomas Salvador. Fundamentos...op.cit., p. 319 e ss.

[11] BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa...Lumen Juris, 2010, p.199, nota n. 128.

[12] VIVES ANTÓN, Tomas Salvador. Fundamentos... cit., p. 482.

[13] BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa...Lumen Juris, 2010, p.200.

[14] RAMOS VAZQUEZ, José Antonio. Concepção significativa de ação e teoria jurídica do delito. Valencia: Tirant lo Blanch, 2008, p. 378.

[15] MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico y de la empresa... p. 59.