quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Publicidade em excesso dos autos atrapalha a defesa

A forma e a insistência da imprensa ao cobrir um caso criminal podem definir o futuro de um réu — culpado ou inocente. Quando há um conflito de interesses, como o da publicidade do processo versus garantias individuais, nenhum direito é absoluto. É o que afirma a advogada Flávia Rahal ao criticar a publicidade e o sigilo excessivo dos autos. “A publicidade do processo penal precisa ser repensada”, assevera. Para ela, o direito à informação tem limites e não deve ferir garantias e direitos individuais.
No 16° Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que acontece em São Paulo, a advogada palestrou sobre a opressão da publicidade no processo criminal. Acompanhada da juíza federal Simone Shreiber, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, elas mencionaram julgados que demonstram que direito à informação é tão importante quanto garantir que a defesa de um acusado seja efetiva.
De acordo com Flávia Rahal, o direito à publicidade dos atos processuais surgiu na França, o que significava algo mais amplo: acesso à Justiça e direito de defesa. Em muitos períodos sombrios da sociedade, o réu não tinha direito de defesa. “Na inquisição, os autos eram absolutamente sigilosos”, lembra. “Mas, o que em princípio parecia ter somente pontos positivos se tornou com o passar do tempo tão acusatório quanto a própria inquisição. Hoje, os inquéritos e ações penais abastecem a imprensa com a justificativa de dar transparência à Justiça”, diz.
Ela destaca que casos que ganham as páginas dos jornais e ocupam as inserções na televisão geralmente atrapalham a realização da Justiça. “A mesma Justiça que prende arbitrariamente por pressão pública um acusado, irá mais tarde soltá-lo”, indica. A advogada, em sua exposição, relembrou casos amplamente noticiados que resultaram em espetáculos midiáticos sem se levar em conta os direitos e garantias individuais.
No mais recente deles, o do goleiro Bruno, ela aponta que os jornais tiveram acesso aos depoimentos dos réus antes dos advogados, que precisaram ainda recorrer às instâncias superiores para poderem exercer a defesa. Além disso, vazamentos de vídeos não autorizados pelo réu dentro do avião, quando estava sendo transferido para Minas Gerais, na sala do delegado e ainda dentro da penitenciária são cenas sem qualquer interesse para a sociedade, de acordo com a advogada. “Elas expõe e violam diretos”, completa.
“Mesmo com as delegadas afastadas, outros vazamentos aconteceram”, critica. Ela cita que o artigo 20 do Código de Processo Penal diz que cabe a autoridade policial decretar o sigilo do processo. Dessa forma, ela garante que o responsável é quem quebra o sigilo e não a imprensa que publica. “Quem tem acesso aos autos, deve respeitá-lo”, recomenda.
Flávia Rahal afirma que o sigilo processual deve ter a função de proteger os réus e não cometer irregularidades, como no caso citado, no qual os advogados sabiam por meio da imprensa o que a Polícia alegava. “Nestes casos, o sigilo oprime a defesa”, reforça.
O caso da morte da menina Isabella Nardoni é apontado pela advogada como outro exemplo de cobertura da imprensa que atrapalha a Justiça. “Tvs divulgaram em tempo real a reconstituição do crime, que foi feito em um domingo à tarde. E a sentença condenatória do casal foi lida, com a ajuda de altos falantes, na porta do Fórum e recebida com palmas e fogos pelas pessoas que estavam ali acompanhando de perto o Júri”, comenta.
Não ficou de fora da palestra da advogada o emblemático caso da Escola Base, no qual os donos de uma escola infantil foram acusados pela Polícia de abusarem sexualmente dos alunos. Jornais publicaram inúmeras reportagens com base em depoimentos de mães e afirmações de um delegado. Posteriormente, ficou comprovada a inocência dos acusados. Eles entraram na Justiça e conseguiram indenização contra veículos de comunicação.
“Casos como estes, muito repercutidos pela imprensa, têm consequências catastróficas”, lamenta. “Quando a ação penal vai para as páginas dos jornais há um pré-julgamento e um veredicto é estabelecido previamente”, diz. Para ela, o caso se assemelha a uma pintura que mostra uma execução em praça pública diante de pessoas que clamam por Justiça. Ainda sobre o Júri Nardoni, ela ressalta que pessoas que eram favoráveis ao casal foram retiradas da porta do Fórum, como o pastor que pedia o perdão dos réus.
Flávia Rahal afirma que um juiz não pode se deixar levar pelo clamor social para decidir. “As pessoas extravasam o rancor que é delas”, citando o ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal, a advogada ressalta que uma notícia condena rapidamente um acusado.
Questão de imparcialidadeA campanha midiática pela condenação de um réu já levou a Suprema corte americana a anular julgamentos, como afirma a juíza federal Simone Shreiber. Mesmo sem critérios objetivos que indiquem a imparcialidade de jurados, em um caso de homicídio de grande comoção nacional em 1961, a corte entendeu que eles tendiam a condenar o réu antes mesmo do julgamento. “Lá, os jurados são questionados antes sobre sua opinião, e oito dos doze disseram que ele era culpado”, explica.
Outro recurso que pode ser utilizado é a transferência do julgamento para outra cidade que não esteja contaminada com o clamor, como em um processo de 1962. Como a veiculação da mídia tinha sido muito explorada, a corte aceitou o desaforamento para outro Estado. A Polícia divulgou um vídeo no qual o acusado não sabia que estava sendo gravado.
Outras irregularidades também podem levar a nulidade do julgamento. No processo em que um médico era acusado de matar sua mulher grávida o julgamento foi anulado após várias irregularidades constatadas. Entre elas, o vazamento da lista dos nomes dos jurados escolhidos. “Eles receberam cartas pedindo a condenação do réu”, indica.
Atualmente, a Justiça americana adota alguns procedimentos para garantir a lisura do processo. Em caso de comoção nacional, a lei estabelece que o réu deve ser preservado. Além disso, outras medidas visam assegurar a imparcialidade do Júri. O desaforamento e adiamento podem impedir o envolvimento prévio dos jurados sobre um determinado réu.
Polêmica, mas também utilizada, é a proibição de que pessoas envolvidas no caso falem com a imprensa próximo da data do julgamento. De acordo com a juíza, essa medida levanta críticas de que ela atenta contra a liberdade de expressão, direito garantido na Constituição.
Cuidados como a incomunicabilidade de jurados já são adotados pela Justiça brasileira, mas isso pode não ser suficiente. No Júri do casal Nardoni, por exemplo, os gritos de populares que pediam a condenação dos réus podiam ser ouvidos de dentro da sala de julgamento. Mas o assunto não é discutido em nenhuma jurisprudência no Brasil.
Segundo a juíza, o Supremo Tribunal Federal tem julgados que ressaltam a liberdade de expressão, porém, afirmam que ela não absoluta diante de outros direitos. Na Petição 27.027 no STF, Anthony Garotinho sustenta que foi alvo de grampos que estavam sendo divulgados pela imprensa. Para o ministro Sepúlveda Pertence, no caso, a liberdade de expressão não poderia se sobrepor ao direito individual do político.
No Habeas Corpus 82.424, um homem foi condenado por racismo ao produzir materiais editoriais de ódio contra os judeus. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, que tratava da Lei de Imprensa, o entendimento foi o mesmo. Também foi negada a Reclamação 9.428, do jornal O Estado de S. Paulo, que questionava a decisão judicial que o proibiu de divulgar qualquer informação sobre uma operação da Polícia Federal que investigava o filho de José Sarney, Fernando Sarney.
Liberdade de expressão com limitesPara a juíza Simone, a verdade jornalística não é mediada, a investigação não se sujeita a regras e, consequentemente, há a imprestabilidade de provas produzidas pela imprensa, como o uso de câmeras escondidas. “Ela não foi produzida dentro do devido processo legal”, endossa.
“O interesse da imprensa pelo fato criminal é legitimo, e faz parte da manifestação da liberdade de expressão, mas é preciso se atentar para o efeito judicial de uma campanha midiática”, observa. Ela aponta ainda que essa campanha já tem punição na Corte Européia de Direitos Humanos, contra um jornalista austríaco porque tentou influenciar um julgamento criminal de um político acusado de corrupção. “Ele foi condenado a pagar uma multa”, explica.
No caso, ela destaca que não é possível afirmar com segurança se as reportagens prejudicaram o julgamento, mas sim, avaliar a potencialidade delas.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Tipificação penal das “palmadas”

Está em tramitação mais um projeto de lei que objetiva proibir a aplicação de palmadas na correção educacional de crianças. O “castigo corporal” e o “tratamento degradante” são tidos como violações dos direitos das crianças e adolescentes.
Contudo, o projeto gera uma reflexão importante acerca dos limites da ingerência do Estado na vida das pessoas, tendo em vista que os pais são, de certo modo, tolhidos de sua função de educar seus filhos. A maneira de educar as crianças e adolescentes varia e não deve ser matéria regulada por leis. É desarrazoado pensar que um castigo físico leve, como um simples puxão de orelha, pode transformar o pai ou a mãe em um infrator penal, sendo que vigora em matéria penal o princípio da insignificância, corolário do princípio da intervenção mínima, que orienta o Estado a não criminalizar ou punir condutas leves, de mínima ofensividade, que não violam o bem jurídico incolumidade física e mental. Ora, utilizar o direito penal, - instrumento mais poderoso do Estado, uma vez que intervêm na esfera da liberdade do cidadão com a ameaça da pena - para beliscões e tapas correcionais, é no mínimo uma forma esdrúxula de tipificar condutas insignificantes violando a verdadeira função do direito penal que é de proteção a bens jurídicos relevantes. Ademais, o abuso dos meios corretivos já encontra correspondência no Código Penal, especialmente no art. 136 (maus tratos), art. 129, §9º (lesão corporal qualificada) no âmbito doméstico e ainda na Lei de Tortura (Lei 9.455/97) que levou para cadeia aquela Procuradora aposentada... Temos ainda a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) que dispõe de medidas protetivas em favor das mulheres, incluindo aí as crianças e adolescentes. O que se vê no país é uma compulsão legislativa servindo de plataforma política eleitoral para distrair a atenção pública contra a incompetência e desinteresse de nossas autoridades para com a segurança pública.


Leonardo Lobo de Andrade Vianna, advogado criminalista no Paraná.

Condenação não pode ser baseada só em inquérito

Condenação não pode ser imposta apenas com base em depoimentos prestados na fase de inquérito policial. O entendimento, por maioria de votos, é da 1ª Turma do Supremo Supremo Tribunal Federal, que concedeu Habeas Corpus para J.C.M.B. Ele foi condenado, no Rio Grande do Sul, por latrocínio. Com a decisão, os ministros cassaram a condenação imposta e restabeleceram a decisão do juiz de primeira instância, que absolveu o acusado.
Ele foi absolvido em primeira instância, mas condenado pelo Tribunal de Justiça gaúcho em sede de apelação do Ministério Público estadual. A defesa recorreu do acórdão do TJ gaúcho ao Superior Tribunal de Justiça. Depois de ter o pedido negado na corte superior, impetrou HC no Supremo.
O julgamento começou no início de agosto, quando o relator do caso, ministro Marco Aurélio, votou pela concessão da ordem. Para ele, o caso era emblemático. “Não se trata de valorar depoimentos prestados durante o inquérito e a posterior retratação em juízo. Busca-se saber se depoimentos colhidos durante o inquérito sem o contraditório, refutados por sinal em juízo, servem ou não à condenação”, explicou o ministro.
Marco Aurélio disse que o STF vem reiteradamente proclamado que “o que coligido na fase de inquérito não serve a respaldar decisão condenatória”. Dessa forma, seria indispensável a demonstração da culpa em juízo, sob o ângulo do contraditório, disse o ministro ao votar pela concessão do HC.
Na ocasião, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Na sessão desta terça-feira (24/8), ele apresentou seu voto-vista. Ao decidir acompanhar o relator, o ministro Toffoli disse que não encontrou nenhuma outra prova ou elemento para fundamentar a condenação. Ele disse ter encontrado apenas os depoimentos colhidos na fase de inquérito. E, para o ministro, esses depoimentos não foram submetidos ao contraditório. Somente o ministro Ricardo Lewandowski divergiu do relator. Com informações da Assessoria de Imprensa do Supremo
HC 96.356

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Estado abre mão de punir quando demora a julgar

“Se o Estado chama para si o poder de infligir a pena, então ele deve exercê-lo dentro dos limites que a sociedade lhe impôs. Não pode se apoderar, como tem feito, do tempo do particular. Se o fizer, abre mão do tempo como pena.” A conclusão é do desembargador Geraldo Prado, da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao votar para reverter a sentença de pronúncia contra um réu e declarar extinta a punibilidade do fato em relação a ele. O processo contra o réu se arrastava há 14 anos.
Ao analisar o “tempo de cada um e o tempo do poder”, o desembargador cita vários autores que analisam a duração do processo e suas consequências. Em uma delas, Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró contam sobre uma decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que conclui que a sentença condenatória não justifica a demora do processo.
“O processo penal, símbolo de garantia dos direitos fundamentais, também pode representar um prejuízo ao acusado, mesmo porque é evidente que a persecução penal dá ensejo a vários atos limitadores dos direitos individuais, tais como anotação da distribuição da Ação Penal, ônus de comparecer aos atos processuais, sob pena de condução, dever de comunicar ao juiz a mudança de endereço, etc”, afirmou o desembargador.
Ele afirma que há várias percepções de tempo; de um lado, a percepção da duração do processo para as partes, de outro, para os espectadores. “Sob o ponto de vista social, todo o tempo é despendido em torno da estigmatização social própria de quem é acusado da prática de um fato criminoso, especialmente no contexto da comunicação de massas”, afirma. Ele cita, ainda, o italiano Luigi Ferrajoli: “se hoje pode-se falar em valor simbólico e exemplar do Direito Penal, ele deve ser associado não tanto à pena mas, verdadeiramente, ao processo e mais exatamente à acusação e à amplificação operada sem possibilidade de defesa pela imprensa e pela televisão”.
Segundo o desembargador, “a demora injustificada em dar resposta aos casos penais impõe que o Estado, por inoperância própria, ‘abra mão’ de seu direito de punir porque, na verdade, já o exerceu por meio da submissão do réu a intenso e prolongado sentimento de incerteza e angústia”.
O desembargador rebate, também, o argumento que costuma pairar no Judiciário: a de que a culpa pela demora também pode se dar pela própria defesa do acusado. “Especialmente agora os juízes dispõem de meios eficazes para evitar essa espécie de atitude, já que a concentração dos atos processuais em audiência, como consequência lógica do princípio da oralidade, visa não só dar efetividade às garantias do acusado, mas também a coibir eventuais posturas protelatórias das partes”, disse.
No caso concreto, o réu foi acusado de ter ajudado um homem a matar o vizinho, já que teria segurado a vítima, impossibilitando sua defesa. O crime aconteceu em 1996. Desmembrado o processo, o homem, acusado de ter dado as facadas que culminou com a morte da vítima, foi julgado e o Tribunal do Júri desclassificou a conduta para homicídio culposo. Ele foi condenado a pena de um ano de reclusão e um de detenção. Essa decisão transitou em julgado em 1997.
O MP propôs a absolvição do homem acusado de ter participado do crime, pois entendeu ser “impossível o reconhecimento do concurso de agentes no excesso culposo”.
Os desembargadores chegaram a mesma conclusão, mas por fundamentos diferentes. Entre eles, o da demora no julgamento do processo, mas também a de prescrição da pena. Isso porque, se condenado, a pena não seria maior que a do réu, condenado por lesão corporal e homicídio culposo.
Eles consideraram, ainda, o fato de o acusado não ter sido encontrado para ser citado. “Ainda que ele seja tido como foragido — e isso constitui presunção em seu desfavor, repudiada pela Constituição da República — a sua ausência no processo é fruto exclusivo da inoperância do Estado.”
“Passaram-se, pois, quase quatorze anos, mais que o mínimo cominado ao crime de homicídio qualificado, e nenhuma resposta foi dada, quer à sociedade, quer ao réu”,escreveu o desembargador na decisão. Para ele, um processo que dura esse tempo sem perspectiva para se chegar a uma decisão, favorável ou não ao réu, “viola manifestamente o direito fundamental à segurança jurídica”. Ele foi acompanhado dos desembargadores Maria Helena Salcedo e Cairo Ítalo França, integrantes da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio.
Processo simplesGeraldo Prado afirmou que não há inovação e citou decisão da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nela, os desembargadores absolvem um réu condenado por roubo pelo excesso de tempo transcorrido entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória. “Entendo que não mais se justifica a manutenção deste processo, iniciado nos idos de 2000. Estamos em 2007”, afirmou à época o desembargador Nereu José Giacomolli, relator da apelação.
No caso analisado pelo TJ gaúcho, o desembargador chamou atenção para o fato de o cartório ter demorado mais de cinco meses apenas para intimar o Ministério Público da decisão condenatória. “As intimações da sentença e a tramitação do recurso tardaram em torno de um ano e seis meses. Somente para intimar o Ministério Público da sentença, o cartório demorou quase cinco meses”, escreveu.
Giacomolli afirmou que um dos réus nem sabia porque estava sendo acusado. “Evidentemente, depois de um ano após o ocorrido, ocasião, inclusive, em que estaria embriagado, dificilmente lembraria do acontecimento”, completou o desembargador. Também citou depoimento da vítima, ouvida depois de quatro anos.
O desembargador afirma que as declarações da vítima em fase policial foram lidas na fase de instrução processual, o que, no seu entendimento, “retira a espontaneidade, a lisura, a realidade e seriedade do depoimento”. Para o desembargador, o processo era simples, só havia dois réus e um fato delituoso, não se justificando a demora para julgar os acusados de roubo.
Clique aqui para ler a decisão da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Preso que tem chip de celular não comete falta grave

O juiz não pode se prestar ao papel de paladino da segurança pública para atender o clamor das ruas que assim o exige. Assim como não se deve colocar em risco a garantia individual do cidadão só porque o Estado, como legislador, foi omisso nas suas funções. Com esse fundamento, a 12ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo mandou excluir a anotação de falta grave do prontuário de Wellington Rodrigues Ferreira de Oliveira, flagrado com um chip de telefone celular.
A tese aprovada, por unanimidade, pela turma julgadora foi a de que se o ato praticado pelo preso não tipifica nenhuma infração disciplinar, não há como o punir sem ferir o princípio da reserva legal. No caso, o sentenciado sofreu castigo pela prática de fato não previsto como infração disciplinar na Lei de Execuções Penais.
Em outras palavras: não há previsão legal a respeito da posse de acessórios de aparelho de telefone celular ser falta disciplinar de natureza leve, média ou grave. Logo, a punição não pode ser mantida por ausência de previsão legal, sob pena de violar o princípio constitucional da reserva legal.
A defesa Wellington entrou com recurso no tribunal contra decisão da juíza da 5ª Vara das Execuções Criminais de São Paulo. Ela entendeu que a guarda do chip de celular dentro do presídio se configurava prática de falta disciplinar de natureza grave. A juíza, então, determinou que o preso flagrado com o equipamento perdesse os dias remidos.
A defesa sustentou que não havia prova de autoria da infração disciplinar. Além disso, de acordo com a defesa, o chip supostamente encontrado com o preso não permitiria, isoladamente, a comunicação com outros detentos ou com pessoas de fora do presídio. E pediu que o TJ-SP reformasse a decisão e afastasse a anotação de falta grave do prontuário de seu cliente.
O advogado argumentou que a tese da juíza de execuções criminais não se sustentava porque, pela Lei de Execução Penal, só comete falta grave o condenado a pena privativa de liberdade que tiver em sua posse “aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.
A lógica que a defesa quis imprimir ao seu argumento foi o de que o chip de telefonia móvel encontrado em poder de seu cliente é um equipamento que, isolado, não permite a comunicação. E, seguindo esse raciocínio, não estaria configurada a infração disciplinar, impondo-se a absolvição.
O casoNo início de abril de 2009, Wellington foi flagrado na posse de um chip de telefone celular, dentro do presídio onde cumpre pena, por tráfico de drogas. A juíza que reconheceu a prática de falta disciplinar grave entendeu ser irrelevante que o preso estivesse na posse apenas do chip do celular e não do aparelho todo.
“O que importa é que referido objeto (chip) destina-se exclusivamente à comunicação com o meio externo, o que é vedado”, afirmou a juíza de execuções criminais.
A turma julgadora do Tribunal de Justiça entendeu que ela exagerou na interpretação da lei. Para os desembargadores, a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve nos planos jurisdicional e administrativo.
De acordo com o relator do recurso, desembargador Vico Mañas, a aplicação da pena situa-se no campo do direito penitenciário, mas a proteção da efetiva aplicação da sanção penal é objeto do processo de execução, que guarda natureza jurisdicional e integra o direito processual.
O relator destacou que embora a Lei nº 11.466/07, ao alterar o artigo 50 da Lei de Execuções Penais, tenha criado nova modalidade de falta grave, não se pode querer alargar o alcance do novo dispositivo, nele inserindo a posse de mero chip para aparelho de telefonia celular.
“Ainda que o aparato seja destinado à comunicação, o fato é que, isoladamente, não é apto a permiti-la”, disse Vico Mañas. Para o relator, em matéria criminal não é permitido interpretação extensiva contra o acusado ou do condenado. No entendimento de Vico Mañas, o texto do artigo 50, VII, da LEP, como toda norma penal, é de caráter taxativo.
O relator acrescentou que o princípio da reserva legal também é vigente na execução penal. Segundo o desembargador, não há como negar que a prática de falta grave acarreta sérias restrições ao sentenciado, como a regressão de regime e a perda dos dias remidos, sanções de caráter nitidamente penal.
A tese sustentada por Vico Mañas já foi defendida na 12ª Câmara Criminal, turma que zela por teses garantistas. O desembargador Eduardo Pereira Santos já defendeu que o juiz não se prestará a impor sanção ou medida que fira o ordenamento jurídico e as garantias individuais como a da reserva legal para, deixando sua alta função que deve primar pela isenção, tomar partido e travestir-se na de bastião da segurança pública.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A advocacia é a profissão das esperanças

Em 11 de agosto comemoramos o Dia do Advogado, data em que foram criados os cursos jurídicos no Brasil e como os operadores do direito conhecem sua história, podemos fazer algumas reflexões que nos parecem relevantes não em função do passado, mas do futuro, que é o que nos interessa.
Advogados são felizesAinda que muitas pessoas pensem de forma diferente, nós advogados somos criaturas humanas e fomos criados para sermos felizes. A advocacia é instrumento da felicidade, pois viabiliza a liberdade daquele que a tenha perdido injustamente ou que se veja ameaçado de perdê-la.
Também é graças à advocacia que se protege a honra das pessoas ou se obtém reparação quando ela é atingida. O patrimônio do nosso cliente também é recuperado ou protegido graças ao trabalho do advogado.
Ora, se o trabalho do advogado viabiliza a felicidade de seus clientes, nenhum advogado pode esquecer-se de que a nossa profissão, como qualquer outra, é um instrumento da felicidade de quem a exerça.
Se uma pessoa não está feliz em sua profissão, deve procurar outra. São inúmeros os casos de pessoas que se formaram em determinado curso, passaram a exercer esta ou aquela profissão e depois foram para outra. Há o psicólogo que se tornou cozinheiro, a contadora que se tornou psicóloga, o advogado que se tornou jornalista, a médica que se tornou atriz, enfim, as pessoas querem a felicidade. Como disse Ferreira Gullar: “Não quero ter razão, quero é ser feliz”.
Os preconceitos Há muitos preconceitos ridículos no cotidiano do advogado que devemos eliminar. Estamos no século 21, onde a única coisa permanente é a mudança, a transformação e onde preconceitos revelam apenas ignorância e atraso. Certas posturas e afirmações preconceituosas prejudicam a advocacia, causam um mal enorme à sociedade e inviabilizam um exercício profissional capaz de levar alguém a ser feliz.
O preconceito “escolar” é um deles. Encontramos anúncios onde se exige que o candidato a uma vaga de advogado tenha se formado em faculdade “de primeira linha”, na vã esperança de que o idiota possa ter se curado da idiotice porque o diploma que carrega é desta ou daquela escola. Pelo que sabemos, “linha” é coisa de costureiros ou de ferrovias, não de cultura jurídica ou de advocacia.
Na área do Direito o conhecimento hoje é amplamente disponibilizado. Já não se aprende apenas nas salas de aulas onde mestres iluminados transmitem sua sabedoria aos alunos como se estes fossem se iniciar em alguma instituição esotérica e aos poucos escalar uma nova escada de Jacó.
Imaginar que só existe qualidade de ensino em meia dúzia de escolas é pretender que apenas alguns grãomestres dos augustos mistérios do direito possam ter o monopólio da sabedoria jurídica e os segredos do conhecimento, por integrarem alguma academia de sábios transplantados diretamente do Olimpo.
Outro preconceito idiota (perdoem-me o pleonasmo) é o jovem advogado ou pior ainda o cliente desinformado imaginar que a boa advocacia é a exercida nos “grandes escritórios” ou “firmas”. Não há aí qualquer indício de que esteja presente uma reserva de qualidade nos serviços. Um advogado já falecido me dizia que um grande escritório poderia ser comparado a uma boiada onde havia muitas cabeças, mas todas de quadrúpedes.
Brincadeiras ou maldades à parte, há espaço para escritórios pequenos na advocacia e haverá sempre. Dizer que o pequeno escritório vai desaparecer ou vai ser “engolido” pelos maiores é imaginar que a advocacia possa ser comparada ao mercadinho ou à lojinha da esquina.
Aliás, está havendo no mundo todo um movimento bem diferente desse. Aqui mesmo em São Paulo isso acontece. Vemos quase todo dia anúncios ou notícias que dizem que em determinada “firma” foram admitidos mais dois ou três advogados ou que outro tanto se tornaram “sócios”. Isso é muito bom, pois revela que alguns colegas estão trabalhando e progredindo. Mas nunca vimos notícias ou anúncios de que advogados saíram daquelas “bancas” para abrir escritórios pequenos ou mesmo para tomar outros rumos.
Muitas empresas ou pessoas já deixam os grandes escritórios e procuram os pequenos, onde podem contar com serviço personalizado e eficiente.
Se o advogado recentemente formado tiver esse preconceito e alimentar o sonho de trabalhar num grande escritório, pode ter sucesso. Mas vai ter que passar um bom tempo pastando, trabalhando mais de 10 horas por dia, inclusive sábados, domingos e feriados, em troca de salário que não é suficiente para pagar o passeio que o dono do escritório fez no último fim de semana.
Portanto, ninguém pode ter êxito na advocacia se exercê-la a partir de preconceitos, de visões ultrapassadas do mundo, de uma posição genuflexa ante os falsos proprietários da verdade ou aos ridículos monstros do direito.
A realidadeNunca é demais lembrar que o Dia do Advogado não é apenas uma data no calendário. Também não podemos esquecer que se algumas pessoas deixam de trabalhar nesse dia a pretexto de nos homenagear, o que querem mesmo é apenas faltar ao serviço, pois estão se lixando para os advogados e sempre que podem nos ignoram ou nos maltratam.
Devemos considerar que o Dia do Advogado é todo dia. Não basta que sejamos homenageados em 11 de agosto e desprezados nos outros dias do ano. Mas o pior desprezo que podemos sofrer é o praticado por nós mesmos.
Dizem muito que a vida do advogado está difícil e que a advocacia está sendo destruída e mesmo que a OAB acabou. Essas afirmações não são verdadeiras e representam uma doença mental, que impede o doente de raciocinar com clareza e o faz delirar, ter alucinações e dizer coisas desconexas.
No mundo atual todas as profissões liberais passam por grandes transformações, com o que as pessoas que as exercem estejam tendo uma vida difícil. Dizem até que uma antiga profissão, a das chamadas “mulheres da vida fácil”, vem enfrentando dificuldades.
Sempre haverá advocaciaA advocacia não está sendo e jamais será destruída, pois ela cuida da litigiosidade social, dos conflitos entre as pessoas, enfim, dos problemas mais relevantes do homem, como o patrimônio, a honra e a liberdade. Não há qualquer indício de que esteja acabando. Muito pelo contrário: cresce a cada dia, com um grande numero de pessoas desejando ser advogados. Se isso é bom ou mau, o tempo dirá. Mas o exercício desta ou daquela profissão pelas pessoas legalmente habilitadas, não pode ter limites. Se para muitos a advocacia é um trabalho, um meio de vida, não podemos nos esquecer que para tantos outros isso é, antes de mais nada, um sonho, uma esperança, um desejo inamovível que se traz na alma. Não podemos limitar o sonho de ninguém.
Não é por acaso nem por corporativismo que a Constituição diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça. Ainda que no Brasil muitos ignorem a Carta Magna e mesmo que autoridades a desrespeitem, os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos apontam na direção de que a Justiça é o principal postulado da civilização. Os artigos 10 a 13 desse estatuto garantem os direitos básicos de qualquer pessoa em qualquer país e sua observância passa necessariamente pela ação da advocacia.
Quando o homem saiu das cavernas e resolveu criar a sociedade que se pretende civilizada, a primeira razão foi a justiça, para evitar que a humanidade pudesse se comportar como selvagem. O país pode privatizar a segurança, a educação, a saúde, enfim, praticamente todo o atendimento às necessidades dos seus cidadãos. Mas se admitir a privatização dos serviços da Justiça estará renunciando à sua própria razão de ser como sociedade politicamente organizada, institucionalizando-se a anarquia.
Nessas condições, é impossível admitir a existência de um estado de direito, de uma sociedade civilizada, se afastarmos a presença da advocacia. Consequência lógica disso: não há civilização sem advogados. Portanto, a advocacia pode se transformar ao longo do tempo, mas jamais deixará de existir.
Profissão sériaDevemos sempre ter em conta que advocacia é profissão. Já ouvi várias vezes colegas e até conselheiros da OAB-SP, em plena sessão do Conselho, afirmarem que a advocacia é um “sacerdócio”.
Ora, se eu quisesse ser sacerdote teria estudado teologia. Isso não teria sido difícil, pois meus primeiros três anos de faculdade foram na PUC-SP. Outrossim, dizem que há sacerdotes bem sucedidos, ganhando bastante dinheiro, muito mais do que se fossem advogados.
Advocacia é profissão e meio de vida. Dela tiramos o nosso sustento e o de nossos dependentes. Se o advogado está habilitado a fazer concursos e exercer funções que ofereçam determinada remuneração, deve ganhar o suficiente para compensar a escolha profissional, a opção pela advocacia.
A realidade prova que mais de 98% dos advogados são sérios e portam-se conforme a lei, como se constata no exame do numero de inscritos e a proporção dos punidos pelo Tribunal de Ética. Diante de 600 mil advogados, menos de 12 mil agem mal.
Após 36 anos de advocacia, digo aos novos colegas: a advocacia não é a profissão das certezas, mas das esperanças. A maior parte das minhas esperanças foram plenamente alcançadas na advocacia. Se todas não foram, o culpado fui eu, que exagerei nos sonhos ou negligenciei no esforço.
O Dia do Advogado deve ser comemorado não apenas em 11 de agosto, mas todos os dias em que realizamos nosso trabalho com respeito, seriedade e ética. Por tudo isso e mais algumas coisas é que a advocacia faz a felicidade de nossos clientes e a nossa também.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Os direitos humanos do inimigo

Muito se vem discutindo recentemente acerca de uma corrente de pensamento, o Direito Penal do Inimigo, encabeçada pelo jurista alemão Günther Jakobs, a qual é utilizada para legitimar ações estatais de combate enérgico ao terrorismo, pregando tratamento semelhante à criminalidade organizada (tráfico de drogas, crimes econômicos, etc.) e aos delitos sexuais.
Para os seguidores desta vertente, em apertada síntese, as pessoas seriam divididas em dois grandes grupos, os cidadãos e os inimigos, com aplicação de diferentes sistemas de Direito Penal a cada qual deles.
Os primeiros seriam todos aqueles que são considerados como pessoas de bem e que, quando porventura pratiquem crimes, realizam condutas que não negam a existência do Estado; em suma, “o cidadão é autor de crimes normais”[1] , sua conduta seria meramente acidental, não representando, “em absoluto, o princípio do fim da comunidade ordenada, senão apenas uma irritação, um deslize reparável. Assim, o indivíduo infrator é chamado, enquanto cidadão, a restaurar o equilíbrio da vigência normativa, o que se dá por meio da submissão a uma sanção penal”[2] .
Por isso, aos cidadãos criminosos seria imposta uma pena por aquilo que fizeram (Direito Penal do Fato), a fim de restabelecer, tão-somente, o tecido social lesado pelo seu ato.
Por outro lado, existem os inimigos, aqueles que perpetram condutas de alta traição, buscando destruir a Sociedade e, por conseqüência disso, para garantir-lhe a sobrevivência, o Estado estaria legitimado a declarar guerra contra eles, inclusive “assumindo o risco, no caso, também da morte de pessoas inocentes, conhecido como dano colateral.”[3] .
Nesta perspectiva, aos inimigos deve haver “aplicação antecipada da pena como segurança para impedir fatos futuros, com função de neutralização da periculosidade do autor, segundo a teoria das medidas de segurança”[4] , ou seja, a punição não está relacionada com os atos realizados pelo agente, mas, sim, com aquilo que ele é e faz (Direito Penal do Autor).
Saliente-se, por oportuno, que para Günther Jakobs o delinquente não teria sequer que consumar o crime ou até mesmo que dar início a qualquer iter criminis para ser considerado um inimigo, meros atos preparatórios já bastariam para tanto, tendo em vista o risco que ele causa à Sociedade.
Em razão dessa dicotomia entre os cidadãos e os inimigos, os adeptos da mencionada corrente consideram que também deva existir diferenciação entre o tratamento a ser conferido a cada um dos ocupantes desses dois grupos.
As pessoas de bem gozariam de todas as garantias e benesses do ordenamento jurídico de que façam parte; de outra banda, do inimigo esses direitos seriam totalmente suprimidos, pois, ao “não se submeter ao sistema normativo, decidindo por uma ruptura com o contrato social de modo que, não se submetendo ao sistema, a este não pertence. A conseqüência é que as normas do sistema não se aplicam ao ‘dissidente’.”[5] .
Por isso, para o Direito Penal do Inimigo, os cidadãos são considerados pessoas, enquanto que o inimigo é um mero indivíduo, sem ostentar aquele status, já que “a condição de inimigo implica sua desconsideração como pessoa”[6] . Aliás, é justamente “sua desconsideração como pessoa” que legitimaria o tratamento diferenciado, a supressão de garantias fundamentais e, até mesmo, o extermínio.
Por tudo o que foi dito, o Direito Penal do Inimigo é fortemente criticado pelas correntes mais garantistas, as quais entendem que, na vigência do Estado Democrático de Direito, esta divisão em amigos e inimigos da Sociedade não seria premissa válida, mormente porque as Constituições modernas, pelo mundo afora, pregam exatamente o contrário, a igualdade entra as pessoas, independentemente de cor, sexo, religião, riqueza e, certamente, do que fazem ou tenham feito em suas vidas.
Além disso, outro problema apontado com relação a esta vertente de pensamento reside na grande dificuldade de se estabelecer quem seria o tal inimigo e, ainda mais grave, quem teria legitimidade para apontá-lo.
Afinal, os detentores desse poder poderão subvertê-lo para perseguir grupo de pessoas, certamente mais fracos política e economicamente, que tenham interesses contrários aos seus, tornando o Direito Penal, mais uma vez, como já o foi no passado, um instrumento de controle, e lembrando, inclusive, da ideia de Karl Marx sobre o Direito como uma superestrutura ideológica (überbau) de dominação de algumas pessoas sobre outras.
Aliás, como se sabe, o conceito de inimigo da Sociedade não é novo e variou, nefastamente, ao longo da história; exemplos disso foram a caça às bruxas e aos não cristãos na Idade Média, o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, a perseguição aos comunistas nos países capitalistas durante a Guerra Fria e, hoje, o enfrentamento com traficantes de drogas nas periferias das grandes metrópoles.
Ora, amanhã, quem sabe, em razão de qualquer motivo, talvez por defender os direitos humanos, poderá ser este autor ou, até mesmo, o leitor deste texto, considerado o inimigo!
Outrossim, dentro do ordenamento pátrio, nem mesmo parece ser possível que a Sociedade possa identificar “rompimento com o contrato social” em atos praticados pelo tido como inimigo, é esse um dos fundamentos que legitimaria a supressão de suas garantias e direitos.
Isto porque, quando a Constituição Federal veda a pena de banimento (artigo 5º, inciso XLVII, alínea d) e a extradição de brasileiro nato (artigo 5º, inciso LI), ou seja, quando proíbe expressamente a sua “expulsão” do País, está exatamente indicando que o liame existente entre o o Estado e os que aqui residem – independentemente do que tenham porventura feito, é absolutamente inquebrável, já que nos dispositivos apontados inexiste qualquer ressalva que autorize conclusão diversa.
Ademais, afora inúmeras outras criticas muito relevantes já tecidas pela doutrina, é importante lembrar que a concepção do Direito Penal do Inimigo se choca frontalmente com a ideia vigente de Direitos Humanos.
Explica-se: já há algum tempo vem-se reconhecendo internacionalmente que todas as pessoas são dotadas de alguns direitos básicos e fundamentais, os Direitos Humanos, sendo que, e isto é ainda mais importante, estas garantias são inerentes à sua condição humana, o que, inclusive, vem expressamente destacado no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos[7] .
E, ressalte-se, mesmo a “criação de um sistema positivado não implica o abandono da raiz jusnaturalista dos direitos humanos. Ao contrário, é plenamente reconhecido que estes são inerentes ao ser humano, decorrendo daí que eles não surgem da vontade do Estado, mas são por este positivados, a fim de lhes conferir uma qualidade jurídico-normativa, possibilitando que sejam reconhecidos como fontes formais de direitos subjetivos e, se caso for, que sejam deduzidos em juízo ou perante órgãos internacionais”[8] .
Sendo assim, ao revés do que prega o Direito Penal do Inimigo, os direitos mínimos do ser humano, como a vida, a dignidade, além das garantias processuais básicas, como a assistência de um advogado, a ampla defesa, o contraditório, dentre inúmeras outras, – todos considerados direitos humanos –, jamais poderão ser suprimidos, não importando a conduta que a pessoas tenha praticado, por mais nefasta que seja.
Afinal, tendo em vista que, como visto acima, os direitos humanos não são concedidos pelo Estado, mas, na verdade, são atributos de todos, mesmo com o imaginado “rompimento com o contrato social” por um indivíduo, a sua condição de ser humano jamais é afetada.
Deste modo, mesmo que o Direito Penal do Inimigo seja considerado legítimo, este deverá sofrer uma enorme limitação, que o tornará quase que inócuo na concepção em que é defendido, pois a supressão de garantias defendida por essa corrente jamais poderá atingir os direitos humanos, já que o inimigo, por mais monstruoso que seja, ainda será um ser humano.
Notas
[1] DOS SANTOS, Juarez Cirino, O Direito Penal do Inimigo – Ou o Discurso do Direito Penal Desigual, página 5,pesquisado no site www.cirino.com.br, acesso em 20 de outubro de 2009.
[2] PRADO, Luiz Regis, Garantismo Jurídico-Penal e o Direito Penal do Inimigo: Uma Palavra, página 6, pesquisado no site www.regisprado.com.br, acesso em acesso em 21 de outubro de 2009.
[3] JAKOBS, Günther, Bürgerstrafresht und Feindstrafrecht, 2004, item IV, página 93, apud Juarez Cirino dos Santos, ob. cit., página 11.
[4] DOS SANTOS, Juarez Cirino,op. cit., página 8.
[5] CRESPO, Marcelo Xavier de Freitas. Direito Penal do Inimigo: Sobre o que Estamos Falando?, in Boletim IBCCRIM, ano 16, n.º 196, página 3, março de 2009.
[6] PRADO, Luiz Regis, op. cit., página 8.
[7] “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)” – com destaques.
[8] WEIS, Carlos, Direitos Humanos Contemporâneos, Malheiros, 1ª edição, 2ª Tiragem, 2006, página 23, com destaques.
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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Grávida de oito meses é autorizada a abortar

O juiz substituto Luiz Carlos da Costa, de Cuiabá, autorizou o aborto de uma grávida de 32 semanas cujo feto tinha má-formação, com anomalia complexa da parede corporal e membros. De acordo com a decisão, o voto do ministro Carlos Ayres Britto, Supremo Tribunal Federal, sobre feto anencéfalo é “perfeitamente aplicável no caso analisado, porque a probabilidade de vida fora do útero se evidencia, a luz da ciência, ausente”. O voto do ministro se deu no julgamento em que o Plenário do Supremo cassou a liminar concedida na ADPF 54.
O quadro do feto, conforme a decisão, é um “anomalia complexa de parede corporal e membros (limb-body wall complex) compreendida por ausência de parede abdominal anterior, agenesia de coluna lombar e sacral, pé torto a esquerda, amputação da perna a direita com pé do mesmo lado malformado, tórax hipoplásico e artéria umbilical única”. Por conta disso, o juiz alegou que o problema é seguramente incompatível com a vida extra uterina. “Caso a gestação venha a prosseguir, todos os dados da literatura médica apontam para a morte do recém-nascido após o parto dentro de algumas horas ou dias de vida”, afirmou o juiz.
Na argumentação, ele questiona se o aborto deve ser autorizado somente nos casos de risco de vida para a gestante ou decorrente de estupro fixado limite temporal, conforme o Código Penal (artigo 128, I e II). Para ele, a resposta é não. "A Constituição Federal não pode ser interpretada com a viseira da lei infraconstitucional."
O juiz entende que o princípio da dignidade humana garante o direito do não-sofrimento inútil. Diante disso, “obrigar uma mulher a levar a termo gravidez sem qualquer prognóstico de sobrevivência do feto é impor a ela fardo maior do que a sua capacidade de suportar, o que traduz em lancinante dor moral que tangencia à própria tortura”.
Diz ainda na decisão que “na hipótese de aborto autorizado pela legislação infraconstitucional não há limite temporal, por mais forte razão não se pode impor, quando ele decorre com base em fundamento constitucional”.
O pedidoA defesa da autora da ação alegou que “diante da gravíssima má-formação fetal incompatível com a vida extra uterina, estar-se-á diante de um ser considerado morto desde a constatação de sua anormalidade, a primeira argumentação, conclui-se que inexiste afronta ao direito à vida, pois apesar de o feto ser, nestes casos, biologicamente vivo, a verdade é que é juridicamente morto dada as condições apontadas pelos médicos. Não há que se falar em direito à vida do feto em contraposição aos direitos da gestante, já que ele não sobreviverá fora do útero materno”.
Outro argumento usado pela defesa é que se é possível a doação de órgãos de uma pessoa declarada encefalicamente morta, “por qual razão não haveria de permitir a antecipação do parto quando já se sabe que a vida do feto é inviável fora do útero?”.
Clique aqui para ler a decisão