quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Sistema Penal Desigual

Assistimos, impávidos, alterações legislativas escabrosas, elevando e expandindo o direito penal, diga-se, as penas, sem qualquer reflexão à respeito dos fatores desencadeadores dos delitos. Não se importam com a tentativa de diminuir o crime, apenas pune-se. Pune-se por punir, e ingressa o miserável numa carreira criminosa. Miserável porque torna-se um após o cárcere. Entra na vala comum do rótulo de criminoso, bandido, muitas vezes chamado pelos próprios órgãos da ilusória Justiça Criminal (a mais perversa entre todas) de "meliante" ou "delinquente", quando, a própria Lei Maior da nação, determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito da sentença penal condenatória (Art. 5o, inc. LVII, CR) e ainda a Declaração Universal dos Direito Humanos (1948) assinada pelo nossa Pátria, que declara "1.Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa". A presunção da inocência, ou estado de inocência como prefere alguns, é uma das maiores e mais importantes garantias do acusado, caso contrário, é tratado como um objeto do processo penal. O iluminismo nada mas foi do que o ilusionismo de que a pessoa humana seria tratado com dignidade. Cansamos de ouvir em salas de aula, professores realistas, comprometidos com uma maior humanização do sistema penal, que os princípios insculpidos da Revolução Francesa (1789-1799) até hoje não foram implantados. Solidariedade, fraternidade, igualdade, foram a promessa mais ilusória do ser humano. No direito penal assistimos um movimento de expansão da criminalização de condutas, das penas, do alcance dos tipos penais, e, por outro lado, redução dos direitos e garantias individuais, por óbvio. O discurso de emergência e a cultura repressiva trazidos pela mídia são recepcionados e traduzidos em projetos de lei por alguns deputados e senadores que usam isso para acalentar eleitores e públicos alvos, obnubilando , cegando o povo para as verdadeiras causas da criminalidade, bem como pra quem serve o discurso punitivista do direito penal de máxima aplicação. Não se aprofundam, não estudam, não entendem, ou pelo menos não é de interesse geral, os fatores desencadeadores do crime e os mecanismos que possam coibir a prática delituosa, mas pelo contrário, elegem o cômodo e mais ilusório caminho das leis penais. Não aprendemos com os crimes, não queremos saber os motivos que levaram uma pessoa a praticar um delito. Não há uma cultura para isso. E assim, os miseráveis vão sendo esquecidos, jogados no mar, sem possibilidade de salvação, jogados a sua própria sorte, largados por suas famílias, colocados as margens de uma sociedade demagógica que possue sim, os valores da desigualdade, insolidariedade e da não fraternidade. No jogo da vida, ganha quem é mais esperto. Admiramos justamente aqueles acumuladores de capital que enriquecem muitas vezes explorando pessoas. Elegemos políticos aparentemente "moralistas", que pouco tempo depois, através do artifício do voto, usam do engodo para enriquecer e adquirir cada vez mais poder. Fazem do processo penal, um teatro, um ritual mágico, gótico, onde o protagonista deve sofrer, para chegarmos a catarse no final do espetáculo. Porém o espetáculo é a própria realidade, num reality show desastroso. Exemplo vivo desse neopunitivismo (direito penal máximo) é o projeto do álcool zero no trânsito, onde prevê penas elevadas (até 16 anos) para aquele que dirigir após comer um mero bombom de licor, ou mesmo, aquele que dirigir após tomar um simples copo de cerveja, ou ainda aquela que tomar uma taça de champanhe. A contradição está que um copo de cerveja ou uma elevada dose de ingestação de bebida alcóolica levam da mesma forma ao cárcere. Ademais, imaginemos alguém que usou na boate uma bala de êxtase ou outra droga não perceptível aos olhos do policial ou autoridade, passará impune pela fiscalização. Mais uma contradição se dá no contrasenso de que uma pessoa que passa numa rua movimentada da cidade há mais de 200km, sem ter ingerido qualquer bebida alcóolica, receberá apenas uma simples multa por excesso de velocidade. Não será levado ao carcere, não será apreendida sua carteira de habilitação, apreendido seu veículo, etc. Lembrando que já há uma lei rigorosa em vigor que pune rigorosamente o condutor de veículo que ingere bebida alcóolica, incluisve com prisão, apreensão da carteira e do veículo. O que esses parlamentares "moralistas" pregam é a punição por punição, como se o carcere fosse a solução dos males da sociedade, quando na realidade isso não resolve. O crime é um fenônemo social de todas as sociedades. Não tem como impedir o crime, o que se pode fazer é dotar ações afirmativas que diminuem a incidência do delito na sociedade. O problema é estrutural. Não basta a lei para mudar a cultura de um povo. É preciso educação, investimento em prevenção de acidentes, campanhas educativas, maior fiscalização. Isso gera o medo do indivíduo praticar delitos. O controle social informal (não estigmatizante, por exemplo instação de câmaras e mais policiais na rua) é mais eficaz que o controle social formal (direito penal) que traduz em sofrimento e etiqueta o cidadão como inimigo da sociedade, introduzindo-o, como dito, numa verdadeira carreira criminosa, sem volta. Cada ano, os acidentes de trânsito, por exemplo, aumentam, os crimes aumentam, mas isso não acontece por leniência da lei penal, ou por falta de lei, mas por falta de fiscalização e prevenção adequada. Assim é no mundo, mesmo onde há pena de morte a criminalidade aumenta. Por outro lado, na China, a criminalidade é baixa, porque o controle social informal (câmaras, policiais, maior fiscalização, etc.) é forte, tornando desnecessário o controle social formal (direito penal) não marginalizando os indivíduos, não os tornando miseráveis. Percebe-se ainda, um clamor popular pelo aumento do direito penal. Mas isto tem uma explicação razoável. Na realidade, a população mais carente quer é mais rigor com crimes que geram maior nocividade social, como a corrupção, o desvio de dinheiro público, o desperdício de verbas públicas, a conivência do políticos como setores privados (empreiteros, Ongs, banqueiros, etc.) a poluição desmedida (basta ver a recente aprovação do código florestal onde basta plantar depois que desaparece o crime) a sonegação fiscal e a falta de previsão legal de imposto para grandes fortunas. Ou seja, a camada social mais alta da sociedade não é atingida pelo sistema penal, mas somente aquele que está vulnerável ao sistema: as camadas mais carentes. Vê-se, por exemplo, a previsão legal do crime de homicídio qualificado por tortura cuja a pena é de 12 a 30 anos, de reclusão. Agora veja a previsão legal do crime de extorsão mediante sequestro seguida de morte, onde a pena começa com 24 anos e vai até 30. Ora, aquele que tortura seu empregado ou seu sócio e depois mata-o responde por homicídio qualificado. Mas aquele que sequestra o homem rico, extorque seu dinheiro e depois o mata, responde pelo delito de extorsão mediante sequestro seguido de morte, cuja pena mínima é de 24 anos, ou seja, o dobro, para aquela prevista para o homicídio qualificado. E ninguém indaga (ou não quer indagar) porque o sistema penal é assim?. Porque os crimes contra a propriedade são rigorosamente punidos (com imposição de regime inicial fechado para cumprimento de pena) enquanto que os crimes praticados pelas altas camadas sociais (colarinho branco) são punidos com penas baixíssimas (ver por exemplo desvio de verbas públicas, cuja pena é de apenas 2 anos, que certamente será prescrita ou deixada de ser aplicada) com substituição de penas privativas por restritivas de direito, onde o caráter da pena não é estigmatizante, ou seja, não rotula o condenado, permitindo que o mesmo viva normalmente na sociedade. Como muito bem iluminado pelo advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, em O Estado de São Paulo: "Há uma grande dificuldade em entender que a lei não muda condutas, mas sim a educação. E educação em seu sentido mais amplo: ser educado é ser ético, é saber distinguir o certo do errado, o justo do injusto, o moral do imoral, é ter compromissos com a sociedade, é ser solidário, é ainda conheçer os limites de sua liberdade, que residem no respeito aos direitos alheios. Esses valores antecedem a lei e dificilmente são praticados por imposição legal". (As ilusões da lei penal, en 'O Estado de São Paulo', 07.12.2011).