quinta-feira, 27 de maio de 2010

LEGÍTIMA DEFESA REAL

1 INTRODUÇÃO

A legítima defesa representa uma conquista da civilização, paira acima dos códigos como uma exigência natural, a um instinto que leva o agredido a repelir a agressão a um seu bem tutelado, mediante a lesão de um bem do agressor. Constitui a forma primitiva de reação contra um injusto.

Segundo o magistério Cezar Roberto Bitencourt[1] a legítima defesa se deve ao reconhecimento do Estado da sua natural impossibilidade de imediata solução de todas as violações da ordem jurídica, e objetivando não constranger a natureza humana a violentar-se numa postura de covarde resignação, permite, excepcionalmente, a reação imediata a uma agressão injusta, desde que atual ou iminente, que a dogmática jurídica denominou legítima defesa.




2 FundamentoS e natureza jurídica

A legítima defesa apresenta um duplo fundamento: de um lado, a necessidade de defender bens jurídicos perante uma agressão injusta; de outro lado, o dever de defender o próprio ordenamento jurídico, que se vê afetado ante uma agressão ilegítima[2].
Sem dúvida o exercício da legítima defesa constitui uma garantia ao cidadão que retira o caráter criminoso da conduta ou da omissão contra uma agressão injusta, ilegítima, não autorizada pelo ordenamento jurídico. Quem se defende de uma agressão injusta, atual ou iminente, age conforme ao Direito, praticando, portanto, uma ação reconhecida como valiosa, legítima, por fim.

3 Conceito e requisitos

Luiz Flávio Gomes[3] define legítima defesa como o poder conferido ao agente que está sendo agredido injustamente de sacrificar o bem do agredido. Ou segundo o Direito, entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (CP, art. 25).

A legítima defesa exige a presença simultânea dos seguintes requisitos: agressão injusta, atual ou iminente; defesa de direito próprio ou alheio; meios necessários usados moderadamente; elemento subjetivo; animus defendendi. Este último é um requisito subjetivo; os demais são objetivos.

4 Agressão injusta, atual ou iminente

Define-se agressão como conduta humana que lesa ou põe em perigo um bem ou interesse juridicamente tutelado. Em suma, agressão humana significa ataque humano dirigido contra bens jurídicos legitimamente defensáveis. Cumpre esclarecer que somente a ofensa humana é que permite legítima defesa, logo, o ataque de um animal irracional não constitui legítima defesa, mas estado de necessidade. A agressão precisa ser injusta, ou seja, ilícita, não necessariamente típica. Exemplificando: diante de um flagrante de um furto de uso (conduta atípica) de um veículo o proprietário do mesmo está legitimado a reagir na defesa de seu bem jurídico (patrimônio), face o ataque injusto, ilegítimo, ilícito, mas não necessariamente típico. A agressão autorizadora da reação defensiva, não necessita revestir-se da qualidade de crime, basta que seja injusta, um ato ilícito. Injusta será a agressão que não estiver protegida por uma norma jurídica, isto é, não for autorizada pelo ordenamento jurídico. A reação a uma agressão justa não caracteriza legítima defesa, como por exemplo, reagir a uma regular prisão em flagrante ou a ordem legal de funcionário público etc. . O raciocínio é lógico: se a agressão (ação) é lícita, a defesa (reação) não pode ser legítima, pois é a injustiça ou ilicitude da agressão que legitima a reação do agredido. Por outro lado, deve-se examinar a ação injusta objetivamente, e não analisar o autor da agressão uma vez que o inimputável também pode praticar condutas ilícitas ensejando de maneira legítima a reação defensiva. Não há dúvida que cabe legítima defesa contra ataque de menor, de louco...

Por último, a agressão precisa ser atual (que está acontecendo) ou iminente (prestes a acontecer; atos preparatórios muito próximos da execução já autorizam a legítima defesa). A reação do agredido para caracterizar-se a legítima defesa deve ser sempre preventiva: deve, prioritariamente, impedir o início da ofensa ou, então, a sua continuidade, desde que esta, se não for interrompida, produzirá dano maior. Como afirmava Bettiol[4] a legítima defesa deve exteriorizar-se antes que a lesão ao bem tenha se produzido”. A ação exercida após cessado o perigo caracteriza vingança que é penalmente reprimida. Igual sorte tem o perigo futuro que possibilita a utilização de outros meios, inclusive a busca de socorro da autoridade pública.

Impõe-se analisar com cuidado cada caso concreto, para se diferenciar a agressão futura da iminente. Com efeito, enquanto perdurar a agressão (crimes permanentes, por exemplo) sempre é cabível a justificante. Num seqüestro, por exemplo, enquanto a vítima encontrar-se em poder dos criminosos, cabe legítima defesa própria ou de terceiro.

O chamado duelo não preenche os requisitos da legítima defesa, porquanto, quem aceita duelar não atua em legítima defesa, porque nessa situação não há uma agressão inevitável atual ou iminente, e sim futura, ninguém atua para se defender, e sim ambos são agressores. A agressão precisa ser imediata.


5 Defesa de direito próprio ou alheio

Qualquer bem jurídico pode ser defendido legitimamente (vida, patrimônio, integridade corporal, liberdade sexual, honra, etc.) sendo irrelevante a distinção entre bens pessoais ou impessoais. Considerando, porém, a titularidade do bem jurídico protegido por este instituto, pode-se classificá-lo em: próprio ou de terceiro, que autorizam legítima defesa própria, quando o repelente da agressão é o próprio titular do bem jurídico ameaçado ou atacado, e legítima defesa de terceiro, quando objetiva proteger interesses de outrem.

Pode-se agir em defesa de um animal, que integra o patrimônio de seu dono, e ademais, merece ser protegido de ataques ilícitos. Mas a reação precisa ser proporcional, como veremos. Também é sustentável (LUIZ FLÁVIO GOMES) a tese de que inclusive um direito coletivo pode ser defendido (defesa da ecologia, por exemplo). De qualquer modo, não pode haver excesso.

6 Meios necessários, usados moderadamente (proporcionalidade)

A reação, a repulsa, para ser legítima, precisa ser realizada com os meios necessários e proporcional a agressão. O Estado exige que essa legitimação excepcional obedeça aos limites da necessidade e da moderação. A configuração de uma situação de legítima defesa está diretamente relacionada com a intensidade e gravidade da agressão, periculosidade do agressor e com os meios de defesa disponíveis. No entanto, não exige uma adequação perfeita, milimetrada, entre ataque e defesa, para se estabelecer a necessidade dos meios e a moderação no seu uso. Reconhece-se a dificuldade valorativa de quem se encontra emocionalmente envolvido em um conflito no qual é vítima de ataque injusto. A reação ex improviso não se compatibiliza com uma detida e criteriosa valoração dos meios necessários à repulsa imediata e eficaz.

A nossa lei penal não menciona o quesito proporcionalidade mas faz duas indicações nessa direção: a) repulsa com os meios necessários; b) moderação na repulsa.

Necessários são os meios suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa. Se o sujeito ataca a socos, por exemplo, em princípio , a reação não pode ser armada (não é necessário arma para se defender de ataque a mãos limpas) Mas tudo isso é relativo. Dependendo de quem é a pessoa que ataca e de quem se defende, pode ser necessário o emprego de arma de fogo. Por exemplo, ataques a socos de um lutador de boxe lógico que vai permitir à vítima (inferiorizada corporalmente) reação armada (proporcional). Ataque de um lutador de artes marciais da mesma forma, autoriza a reação armada, diante da insuficiência da reação por mãos limpas, sendo necessário um meio mais eficaz. Na hipótese de a vítima ser paraplégica como poderá reagir de ataques de socos e pontapés senão com emprego de uma arma ou algo similar? Tudo dependerá do caso concreto.

Ainda, que o meio seja necessário, exige-se para a justificante o uso moderado da repulsa, especialmente quando se trata de único meio disponível e apresentar-se visivelmente superior ao que seria necessário. Como afirmava Welzel[5], a defesa pode chegar até onde seja requerida para a efetiva defesa imediata, porém, não deve ir além do estritamente necessário para o fim proposto”. O direito à legítima defesa encontra limites na proibição geral do abuso do direito, no principio da proporcionalidade da ação e reação, pois uma defesa, cujas as conseqüências situam-se em crassa desproporção para com o dano iminente, é abusiva e, assim, inadmissível.
O equilíbrio na legítima defesa reside, destarte, na moderação da repulsa. O excesso decorre da imoderação.

No plenário do Júri, como sabemos, todos os requisitos eram desmembrados. Um deles residia sobre a necessidade do meio escolhido; outro diz respeito à moderação. Caso os jurados negassem o quesito da necessidade do meio, isso não significava o fim da legítima defesa; nessa hipótese o juiz devia fazer a votação da moderação, porque, afinal, o mais relevante é a moderação da reação (pouco importando o meio escolhido). Hoje como sabemos, o quesito é simplificado, nos casos de legítima defesa, sendo indagado aos jurados se resolvem absolver ou não o réu.

7 Elemento subjetivo: animus defendendi

O agente precisa atuar com consciência de que defende direito próprio ou alheio. O desvalor da ação (intenção de matar) desaparece quando o agente atua para a defesa de direitos. Nos dizeres de Welzel a ação de defesa é aquela executada com o propósito de defender-se da agressão. O que se defende tem de conhecer a agressão atual e ter a vontade de defender-se.

Segundo Bitencourt a reação legítima autorizada pelo Direito somente se distingue da ação criminosa pelo seu elemento subjetivo: o propósito de defender-se. Atua o agente com animus defendendi. Como afirmava Cerezo Mir[6], somente a presença dos elementos objetivos constitutivos de uma causa de exclusão da criminalidade não pode justificar uma ação ou omissão típica, se faltar o elemento subjetivo de dita causa justificante.

Assim, produzir a morte de alguém, dependendo das circunstâncias, motivos e, particularmente, do elemento subjetivo, pode configurar: homicídio doloso, homicídio culposo, legítima defesa real, legítima defesa putativa...




[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume I: parte geral – 14ª ed. rev., atual. e ampl.- São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 340.
[2] Diego-Manuel Luzón Peña, Aspectos esenciales de la legítima defesa, Barcelona, Bosch, 1978, p. 58 e 79.
[3] Gomes, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral: volume 2/ Luiz Flávio Gomes, Antonio García-Pablos de Molina; coordenação Luiz Flávio Gomes. 2. tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
[4] Giuseppe Bettiol, Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v.1, p. 417.


[5] Welzel, Derecho Penal alemán, pág. 125.
[6] Cerezo Mir, Curso de derecho Penal español, pág. 455.

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