quinta-feira, 27 de maio de 2010

A inconstitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado

O principio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais [1].

De tal forma, o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do individuo contra exposição a ofensas ou humilhações e a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atentam contra o principio da proteção judicial efetiva e ferem o principio da dignidade humana [2]. Com o advento da Constituição Federal de 1988, tornou-se imperativa a re-análise de todo o ordenamento jurídico existente. Os preceitos proclamados pela Constituição, são, segundo o art. 5º, §1º, da CF, direta e imediatamente vinculantes, são normas pragmáticas (de aplicação imediata). Os valores (sociais, filosóficos e políticos) da nossa ordem constitucional, eriçados num novo núcleo axiológico antropocêntrico, da qual prepondera a dignidade da pessoa humana, nenhum ramo do direito ficou imune a necessidade de adequação de suas normas com a Lei Maior.

Em fevereiro de 2001, após a mega-rebelião nos presídios de São Paulo, de cobertura nacional pelos meios de comunicação, a Secretaria de Assuntos Penitenciários de São Paulo baixou a Resolução SAP, de 4-5-2001 regulamentando “a inclusão, permanência e exclusão dos presos no regime disciplinar diferenciado”, destinado a receber presos cuja conduta “aconselha tratamento específico, a fim de fixar claramente obrigações e as faculdades desses reeducandos”. O RDD – Regime Disciplinar Diferenciado passou a ser aplicável aos líderes e integrantes das facções criminosas, bem como aos presos cujo comportamento exija “tratamento específico”. Logo após este episódio, o Poder Executivo enviou ao Congresso um Projeto, alterando o art. 52, da Lei de Execução Penal[1]. A Lei n.° 10.792/2003 criou o assombroso Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), dispondo que o preso provisório ou condenado, quando pratica “falta disciplinar” ou “subversão da ordem”, estarão sujeitos ao regime disciplinar diferenciado, pelo prazo máximo de trezentos e sessenta dias, repetível até um sexta da pena aplicada, em cela individual, com visitas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas, e com “direito” à saída da cela por duas horas diárias de banho de sol.

Entretanto, o art. 1º da Lei de Execução Penal, disciplina que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. De outra sorte, a Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal ainda dispõe: “a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham a ter participação construtiva na comunhão social” [3].

Não obstante, o princípio da legalidade permeia toda Lei de Execução Penal “de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal” [4]. E em termos de disciplina a Lei consagra “o principio da reserva legal e defende os condenado e presos provisórios das sanções coletivas ou das que possam colocar em perigo sua integridade física, vedando, ainda, o emprego da chamada cela escura (art. 45 e §§)” [5].

Em síntese: o objetivo da Lei de Execução Penal é simplesmente desprezado pela atual redação de seu art. 52.

O regime disciplinar diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado, vigente na consciência mundial desde o iluminismo, é pedra angular do sistema penitenciário nacional. O aludido regime diferenciado mais parece à repetição dos suplícios góticos da época medieval, com os mesmos ideais e discursos quiméricos.

Pronunciando-se sobre o tema, e eminente ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza Rocha de Assis Moura assim entende sobre o regime diferenciado: “O castigo físico imposto ao condenado submetido ao regime disciplinar diferenciado viola a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inscrito no art. 1º, inciso III, da vigente Constituição da República. Mas, não pára aí a inconstitucionalidade. A Lei Maior assegura, como um dos princípios de suas relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (art. 4º), estando disposto no art. 5.2 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, em vigor no Brasil, que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” [6].

Como falar-se em “harmônica integração social do condenado” que está sujeito a permanecer 360 dias, prorrogáveis até 1/6 da pena aplicada, em cela individual, com visitas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas, e com “direito” à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol? É no mínimo um discurso desumano e que vulnera a nossa “Carta Cidadã” de 1988, que, como dito, lembra os calabouços medievais, numa bizarra tentativa de retribuir e não ressocializar.

[1] MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München: Verlag C. H. Beck, 1990, 1I 18.
[2] MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, cit., 1I 18.
[3] item 13 da Exposição de Motivos.
[4] item 19 da Exposição e Motivos.
[5] item 77 da Exposição de Motivos.
[6] Notas sobre a Inconstitucionalidade da Lei 10.792/2003, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado na Execução Penal, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Publicado originalmente, em homenagem ao Prof. Sérgio Pitombo, na Revista do Advogado, publicação da Associação dos Advogados de São Paulo, ano XXIV, n.° 78, setembro de 2004, pp. 61 a 66.
[1] O projeto tramitou na Câmara dos Deputados sob n.° 5.073/01.

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