sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

DESCASOS - Sujinho por Alexandra Lebelson Szafir

SZAFIR, Alexandra Lebelson. Sujinho. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 20, n. 23, p. 18, fev., 2012.

Inicio esta coluna com uma boa notícia: o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), depois de alguns anos, retomou os mutirões carcerários. Está em andamento há poucos meses, num Centro de Detenção Provisória de São Paulo, um mutirão que visa a libertar presos recém-chegados àquele estabelecimento, aplicando, se for o caso, as medidas cautelares substitutivas da prisão introduzidas pela Lei 12.403/2011.
Outra boa notícia é que esse mutirão está tendo resultados excelentes e muitas prisões injustas e desnecessárias estão sendo suspensas.
Infelizmente, as boas notícias param por aí. Continuamos prendendo desnecessariamente (como, por exemplo, o caso do “furto da casquinha do McDonald’s”, citado na coluna de janeiro deste Boletim). Pior, continuamos, de forma francamente obtusa, a tratar casos médicos com polícia, prisão, e todo o aparato de repressão penal.
No momento em que os meios de comunicação dão imenso destaque à desocupação forçada da área conhecida como “cracolândia”, na região central da capital paulista, impressiona a quantidade de presos por furtos ligados à dependência do crack. Alguns imploram por uma internação.(1)
André Luis é um símbolo desse fenômeno e do descaso com que o Estado trata esses (ainda) cidadãos.
Para começar, sequer tem-se a certeza de que esse é mesmo o seu nome. Sem documentos, com fala confusa e sem nem saber o nome dos pais, sabe dizer apenas que é morador de rua desde os oito anos de idade e que passa fome todos os dias. Apelidaram-no, carinhosamente, de “Sujinho”, por razões óbvias. Aonde ele ia, era acompanhado por moscas que voavam ao redor de sua cabeça.
Foi preso em outubro passado porque, junto com um comparsa, teria subtraído um aparelho de GPS do interior de um automóvel. No momento da lavratura do auto de prisão em flagrante, o delegado, sem dispor de documentos ou qualquer outro meio para qualificá-lo, entendeu ser ele menor de idade e encaminhou-o à Fundação Casa.
Passados oito dias, por razões e critérios ignorados, referida fundação entendeu que ele não era menor de idade, o auto de prisão em flagrante foi complementado (pois até então só incluía o coautor, já que André Luis era, supostamente, menor de idade) e ele foi levado ao Centro de Detenção Provisória, onde veio a ser descoberto pelo mutirão.
E “descoberto” é a palavra exata, pois as autoridades judiciárias ignoravam a sua existência: embora a lei estabeleça um prazo de 24 horas (art. 306, § 1.º, do CPP), os autos de sua prisão em flagrante sumiram misteriosamente e só foram aparecer no fórum criminal espantosos 33 (isso mesmo, trinta e três) dias após a sua prisão!
Enquanto isso, ele simplesmente não existia para ninguém, embora estivesse literalmente abandonado na prisão.
Obviamente, pediu-se e esperava-se que o magistrado relaxasse a prisão em função do vergonhoso excesso de prazo e se escandalizasse com tamanho desrespeito a um dos mais comezinhos de um cidadão preso: o de ter sua prisão comunicada imediatamente a uma autoridade judiciária.
Mas sua Excelência resolveu transformar a prisão em preventiva, sem dedicar uma só linha à questão do prazo. “Fundamentou” sua decisão no fato de André Luis ser “morador de rua”. Em outras palavras: quem é pobre demais para ter uma casa e foi abandonado pelo Estado e ignorado pela sociedade em geral a vida toda deve ser punido mais ainda! Na verdade, só se tomou conhecimento dele no momento em que ele, supostamente, praticou um crime contra o patrimônio, quando saiu do limbo em que vive para atingir nossos bolsos. Dá para mesurar o grau de hipocrisia e injustiça contido nesse modo de pensar e agir?
Mas não é só. O juiz decretou a prisão preventiva porque um cidadão sem nome e idade certos, de qualificação ignorada deve, a seu ver, aguardar no cárcere até que o Estado resolva legitimá-lo e se digne a verificar seus antecedentes, como se não houvesse tido tempo suficiente para fazê-lo! Logicamente, Sua Excelência não se deu ao trabalho de justificar a não aplicação de medidas alternativas à prisão preventiva.
Felizmente, ainda há juízes com “J” maiúsculo no Tribunal de Justiça de São Paulo! Apreciando um comovente habeas corpus redigido pelo sensível e talentoso estagiário de Direito Daniel Gerstler, o Desembargador João Morenghi concedeu liminar e o “Sujinho” foi solto. Seu direito à liberdade está, ao menos por ora, garantido. Fica a pergunta: e quanto a seus outros direitos fundamentais?
Bom Carnaval a todos.
NOTAS
(1) Ao mesmo tempo, o nosso Prefeito diz a seguinte asneira: seria “absurdo” aguardar que o centro de acolhimento aos usuários de drogas ficasse pronto para se deflagrar a desastrosa operação policial.
Alexandra Lebelson SzafirAdvogada.

Um comentário:

  1. É lamentável que ainda existam juizes com "j" minúsculo, como é o caso do juiz que converteu a prisão em flagrante em preventiva, mesmo após transcorrido o prazo de 33 dias do início da prisão em flagrante, onde os autos do procedimento sumiram.

    Mais absurda ainda é a prisão preventiva sem justificativa, pois teria que aplicar o juiz com "j" as medidas alternativas a prisão preventiva, conforme a nova Lei 12.403/2011. O lamentável é que aqui no Sul também temos juízes com "j" minúsculo espalhados por todos os Foros e, ao meu ver, eles são a grande maioria.

    Ao ler o texto pensei nas palavras de Alexandre Morais da Rosa, penalista catarinense, que ensina em outras palavras: que o direito penal é para aquele que não é consumidor, ou seja estamos numa sociedade consumerista onde não tem lugar aquele que não tem capital para consumir.


    Muito bem escrito o texto, gostei muito, obrigado.

    Att,

    Tiago Oliveira de Castilhos
    Aluno Regular de los Cursos de Doctorado de la Universidad de Buenos Aires/AR – Faculdad de Derecho – Derecho Penal
    Mestrando em Ciências Criminais - PUCRS/BR
    Especialista em Ciências Penais – PUCRS/BR
    Advogado – OAB/RS 79.212 - Andrade e Castilhos Advogados
    Rua Tamoio, 1480 - Niterói - Canoas - RS - 92.120-001 - (51) 3475.1805 / 9909.9522
    www.andradeecastilhos.jur.adv.br

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