segunda-feira, 27 de setembro de 2010

As nossas crianças e as outras.

Dias atrás, estava observando, durante uma reunião familiar, o carinho, a ternura, as preocupações que cercam as crianças, aquelas que já integram a grei e às que vão chegando. Então passei a meditar na absurda diferença existente entre as nossas crianças e as outras. As outras são as pobres, as desvalidas, as carentes de tudo, a começar de uma família estruturada, passando por alimentação, saúde, estudo, lazer e terminando com o afeto, os cuidados e as atenções que toda criança merece e que lhe preserva a inocência e lhe incute auto estima e estima pelos outros.
Verdadeira vergonha nacional, as crianças carentes e as abandonadas denotam a insensibilidade de uma parte considerável de nossa sociedade. Com certeza a questão da criança é o reflexo mais cruel do trágico desequilíbrio social existente no país.
Há alguns anos, um motorista, que com extraordinária perícia evitou atropelar um menino de rua, exclamou em seguida: "não há nada melhor do que criança, o Sr. não acha?" Pois é, eu acho, no entanto, parece que nem todos compartilham de tal opinião. A existência por si só de uma infância abandonada demonstra o pouco caso, o egoísmo, a indiferença de governos e da sociedade como um todo.
A questão não se circunscreve, no entanto, ao abandono material. Falta, na verdade, o afeto, o amor pela criança alheia, que dedicamos às nossas. Não me refiro, evidentemente, na mesma graduação e intensidade, falo sim, do afeto, do amor que um ser humano deve a outro e se exterioriza na forma de um afago, de um carinho, de uma atenção que seja.
A respeito, lembro-me de um episódio que muito me marcou. Perto de casa, diariamente, a menina se postava no mesmo farol. Vendia sempre os mesmos doces, enquanto carregava no colo o pequeno irmão. Minha mulher, também, diariamente, a cumprimentava e ambas conversavam durante o tempo em que o farol permanecia vermelho. Esses pouco instantes diários despertaram a afeição da motorista e a confiança da menina. Quando se encontravam, ela abria um largo e simpático sorriso, como querendo demonstrar a sua alegria por estar sendo alvo do interesse e da atenção de alguém. Parece pouco diante do muito a fazer, mas é muito diante do pouco que se tem feito.
As crianças das classes menos favorecidas, desde sempre, estão crescendo mal: desnutridas, abandonadas, sem afeto, sem saúde, sem educação, exploradas e convivendo com a violência dentro e fora do lar, quando há lar. Cresceram assim diante dos nossos olhos, e nós nada fizemos, a não ser clamar por punição para aqueles que se tornaram trombadinhas e precoces criminosos.
A verdade é que a sociedade, de um modo geral, só se preocupa com o menor porque ele está assaltando. Estivesse ele quieto debaixo das pontes e dos viadutos amargando as suas carências e os seus sofrimentos, continuariam esquecidos e excluídos.
E, essa preocupação com os menores que cometem infrações, ao invés de ser direcionada para as causas dessa conduta, procurando eliminá-las, limita-se à grita generalizada por punição, por castigo, de preferência por uma ação que os coloque longe dos nossos olhos.
Lembro-me que há alguns anos os jornais deram destaque à notícia de que a Praça da Sé estava voltando a ser o local aprazível de outrora. A providência tomada para isso foi afastar do marco zero da cidade todas as crianças que por lá perambulavam. As crianças estavam fora e isso bastava para que a Praça voltasse a ser nossa. Ela estava salva. Pouco importava a permanência dos marreteiros; dos pregadores da bíblia; dos comedores de faca e fogo; dos ciganos, especuladores do futuro; dos poetas repentistas; dos vendedores das saudáveis guloseimas. Até os trombadões permaneceram. Aliás, deve ter sido mais fácil remover os menores do que deter os parrudos trombadões. Apesar da freqüência garantida de todos esses habitues, o problema da Praça estava resolvido, pois os incômodos menores estavam fora.
Recorda-se que em determinada ocasião uma competente e zelosa autoridade embarcou dezenas de menores em vários ônibus e os levou para fora das fronteiras do Estado.
No Rio de Janeiro, a providência adotada teve caráter definitivo: as crianças foram mortas na Candelária.
Em Belo Horizonte, também há algum tempo, uma operação militar foi montada para tirar das ruas cerca de quinhentos menores. A imprensa exibiu fotos de crianças de até quatro anos, muitas com chupeta na boca, sendo colocadas em camburões pelos soldados da milícia mineira, que souberam respeitar as crianças deixando-as com as suas chupetas...
Parece que atualmente o objetivo de riscar as crianças carentes dos mapas urbanos já não está mais nos planos dos defensores das nossas urbes e da nossa incolumidade física. Chegou-se à conclusão que essa é uma providência inócua. As crianças retiradas daqui ou dali, passam a habitar lá ou acolá. Saem da Sé, vão para a Praça Ramos ou para a Praça República. Mortas na Candelária, renascem em Copacabana. Presas em Belo Horizonte, ressurgem em Confins. Lamentavelmente, em substituição a essas providências migratórias, nada absolutamente nada se tem feito, salvo uma ou outra ação isolada. Não há uma grande mobilização social, um plano governamental e nem mesmo promessas são ouvidas, sendo certo que as crianças não são mais lembradas sequer como instrumento de demagogia e de mentiras eleitorais.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

ACÓRDÃO DO TJ/RJ SOBRE ADEQUAÇÃO SOCIAL DA CONDUTA

EMENTA OFICIAL: Cidadão denunciado porque tinha em depósito, para fins de venda a terceiros em uma feira, grande quantidade de CDs e DVDs «pirateados», em violação de direitos autorais; incidindo o Código Penal no artigo 184, §§ 1º e 2º. Sentença absolutória, baseada na insuficiência de provas. Apelação do MP de 1º grau, com respaldo do MP de 2º grau. Respeitosa discordância. Provas coligidas na etapa policial e na instrução que destroem a versão do réu no interrogatório em que tinha tais objetos de imagem e som, ou apenas de som, para utilização pessoal; o que até contraria lógica elementar. No entanto, razão do provimento de piso por outro fundamento. Fato notório de que em todo o Estado do Rio de Janeiro, e talvez em todo o Brasil, CDs e DVDs são vendidos em grandes quantidades, por ambulantes, e por preços módicos; sobretudo, devido ao alto custo para a grande maioria da população. Fato também notório de que pessoas, mesmo de condição social média, média para elevada, e elevada, através da Internet, obtém cópias de filmes e de obras musicais, relegando ao oblívio os ditos direitos de autor. Positivação de que o réu; operário de «lavajato»; com baixíssima renda, a complementava com tal atividade, por certo ilícita, porém muito menos lesiva à sociedade do que o comércio de drogas ou a investida violenta ao patrimônio alheio. Rigor de o julgador estar atento à sofrida realidade social deste país, a qual assim continua; embora de pouco alterada nos últimos tempos. Tipicidade que existe no sentido próprio, mas que é afastada in casu pela aceitação social da mesma conduta; e que apenas cessará por medidas sólidas, de governantes e legisladores, combatendo pelas reais origens. Possibilidade de o Poder Judiciário atuar praeter lege, em casos como o vertente, evitando que o máximo do direito se converta no máximo da injustiça; assim evitando atitude farisaica. Princípios, na esteira, contidos no Preâmbulo e no corpo da Carta Republicana. Incidência, por analogia, do artigo 386, III, da Lei de Regência. Recurso que se desprovê. Voto vencido.
Ap. Crim. 6600/2009 (2ª Vara Criminal da Comarca de Nilópolis) - Rel.: Des. Luiz Felipe Haddad - Apte.: Ministério Público - Apdo.: André Simões dos Santos – J. em 02/02/2010 – 6ª Ccrim. - TJRJ.
ACÓRDÃO
VISTOS, relatados e discutidos estes autos da APELAÇAO CRIMINAL Nº 6600/2009, em que é Apelante o MINISTÉRIO PÚBLICO, e Apelado ANDRÉ SIMÕES DOS SANTOS.
ACORDAM os Desembargadores que integram a Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na Sessão hoje realizada, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso. Vencido o Revisor, Des. Paulo de Tarso Neves, que o provia, nos termos de seu voto.
VOTO:
Em que pese o Parecer do douto Procurador de Justiça Frederico Canellas, respaldando a insurgência da Promotoria de Justiça, reputa-se acertado e justo o decisório de absolvição, emanado do culto Juiz Rodrigo Faria de Sousa.
Com efeito, os policiais civis Ricardo dos Santos Sá e André Felipe de Sousa da Silva, em hora matutina do dia 09 de janeiro de 2008, no interior da residência do réu e de sua companheira Mariângela, acharam e arrecadaram 718 DVDs de películas cinematográficas e de «shows», além de 39 CDs de músicas variadas. Constando, na ocasião, que grande parte daquela mercadoria seria vendida em uma feira dominical que sempre se realiza na cidade de Nilópolis. Tendo o laudo pericial do ICCE comprovado as falsificações, e consequentes violações de direitos autorais.
Os indícios referidos foram corroborados no processo propriamente dito. Embora o réu, no interrogatório, tenha dito que trabalhava em um «lavajato», e que tais CDs e DVDs não seriam para venda, mas para utilização pessoal, tal versão é refutada por elementar lógica. Sendo ele um cidadão de baixa renda, não se daria ao luxo de colecionar CDs e DVDs em grande quantidade, podendo vendê-los na dita feira ou até em qualquer rua, na condição de camelô.
Apesar disso, a absolvição deve ser confirmada, por outros fundamentos. É fato notório que CDs e DVDs «piratas» são vendidos, e revendidos, às escâncaras, nas grandes, médias e pequenas cidades, deste Estado do Rio de Janeiro, e em quase todo o Brasil. Basta que qualquer um de nós, saindo deste Tribunal, dê uma volta pelas artérias próximas, que poderá escolher e comprar um dos mesmos, por dez reais cada DVD, ou por cinco reais, cada CD. E a razão disso repousa em que tais objetos de imagem e som, ou apenas de som, são muito onerosos para a grande maioria da população. Isto, sem falar-se em que diversas pessoas, de camada social média, média para alta, e alta, através do us da Internet, obtêm cópias também «piratas» de CDs e DVDs.
O julgador não pode restringir-se ao puro positivismo, máxime em matéria criminal. Deve ser atento à sofrida realidade social do país, que persiste apesar de mitigada nos últimos tempos. Pessoas como o réu, e recorrido, tendo que sobreviver com apoucados dinheiros, optam por dedicar-se a atividades nem sempre lícitas. Mas neste caso, não se duvida que vender, como ambulante, CDs e DVDs, por preços módicos, é muito menos lesivo à sociedade do que vender entorpecentes, ou investir com violência ou grave ameaça contra o patrimônio alheio.
Embora o ato praticado pelo réu seja típico em sentido próprio, tal fator é contrariado pela larga aceitação, de tal conduta, pela sociedade, na grande maioria. O que retira, da pretensão punitiva, a justa causa.
Nem mesmo se pode divisar presente o delito de receptação. Repete-se que, para um homem de pouca instrução, de baixíssima renda, e habituado a ver muitas outras pessoas praticando o comércio de produtos «piratas», o que ele fazia nada teria de anormal. Aliás, bem salientou a Defensora Pública Thaís dos Santos Lima, em suas finais alegações, que «a compra de mídia pirata se revela como fato socialmente aceitável».
Condenar-se o recorrido a uma severa sanção prisional, na expressão mínima de dois anos, por uma conduta que se comete por diuturno, do Oiapoque ao Chuí, do Acre ao Rio Grande do Norte; por pessoas de várias condições; será traduzido no que os antigos juristas romanos repudiavam, pelo brocardo summum jus, summa injuria. Fugirá do ideal de justiça e de equidade. Atingirá o campo do farisaísmo. Contrariará a Constituição da República no Preâmbulo e no espírito.
Com isto, não se pretende que o dito fato seja impunível. Mas sim, que antes de diligências isoladas, quase sempre contra excluídos da sociedade, haja sólido atuar dos governantes, e também dos legisladores, no combate à «pirataria», em suas reais origens.
A dita absolvição, por conseguinte, se fulcra, por analogia, no dispositivo do inciso III, do artigo 386, da Lei Adjetiva. E por interpretação praeter lege.
À conta destas considerações, e por maioria de votos, nega-se provimento ao recurso.
Rio de Janeiro, 02 de fevereiro de 2010.
Des. LUIZ FELIPE HADDAD - Relator

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Leia voto para trancar ação contra Roberto Haddad

O Supremo Tribunal Federal, em diversos acórdãos, não vem admitindo a instauração da Ação Penal quando flagrante a ausência de justa causa para a formação da relação jurídica penal. A ressalva foi feita pelo ministro Gilmar Mendes, ao determinar o trancamento da ação contra o presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, desembargador Roberto Haddad, que tramitava no Superior Tribunal de Justiça. No dia 10 de junho, o Plenário da corte confirmou a liminar concedida pelo ministro.
O desembargador, que é colecionador de armas, foi surpreendido por uma operação da Polícia Federal que encontrou, em sua residência, uma caneta-revólver calibre 22 de uso restrito e origem taiwanesa. De acordo com a acusação, a arma não estava registrada no Ministério da Defesa. No entanto, constava o registro de uma caneta-revólver de características idênticas, mas de origem norte-americana. Haddad explicou que a posse da arma é legal, pois a peça foi registrada de forma equivocada como sendo dos Estados Unidos.
Gilmar Mendes afirma, em seu voto, que é preciso rezar para se ter senso de Justiça, "mas, se o perdermos, temos de pedir a Deus para, pelo menos, não perdermos o senso do ridículo, o que evitaria esse tipo de vexame. Raramente se vê um caso com tantas características de picaresco, de circense, de bizarro", sentenciou. Ele chamou atenção em seu voto: quando o comportamento do réu nem mesmo em tese constitui crime, não há como permitir a instauração do feito criminal. A maioria dos ministros confirmou o posicionamento de Gilmar Mendes. Para eles, Haddad não pode ser réu da Ação Penal porque não houve crime em relação à arma apreendida em sua residência.
Não há o que discutir sobre a legalidade do porte de arma, afirmou o relator. "A conclusão é cristalina: a arma de fogo apreendida pela PF está devidamente registrada no Ministério da Defesa, o que resulta na completa atipicidade da conduta do paciente e, por isso, não há justa causa para a ação."
O ministro Dias Toffoli endossou o entendimento do relator. "É a mesma arma. Foi feita posteriormente a retificação, mas o registro já havia antes. Era um erro material", explicou Toffoli.
Gilmar Mendes criticou a atuação da Polícia Federal. "Sem dúvida alguma, aqui parece que houve um excesso no que diz respeito à denúncia. Mas houve também um excesso em relação ao seu recebimento, como se se fizesse aquilo que, na linguagem ou na metáfora futebolística, se diz 'vamos fazer um tipo de compensação', já que houve tanto esforço, o tribunal se envolveu tanto, deu decisão, busca e apreensão, fecharam a Avenida Paulista para fazer busca e apreensão no Tribunal Regional Federal. Depois, o resultado dessa chamada Operação Têmis é isto: o recebimento da denúncia por uma caneta-revólver."
Para ele, o país precisa de uma "lei contra abuso de autoridade para quem oferece denúncia, para quem faz investigação e para quem recebe a denúncia dessa natureza. Sem dúvida alguma é preciso que haja limite para essas situações".HC 102.422
Leia aqui o voto do ministro Gilmar Mendes.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Mais eficaz processar barões do tráfico do que "aviõeszinhos"

No início de setembro, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar um pedido da Defensoria Pública, reconheceu a inconstitucionalidade do artigo da Lei de Tóxico que proíbe o juiz de aplicar penas alternativas para condenados por tráfico de drogas.
A decisão do STF reafirmou as garantias individuais previstas na Constituição, que são asseguradas a todos indistintamente. Desde então, a sociedade tem debatido se essa medida é boa ou não para o combate ao tráfico e à redução da violência.
O STF entendeu que cabe ao juiz avaliar, conforme as circunstâncias, se em um caso concreto pode-se aplicar pena restritiva de direitos (chamadas de penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade) ou pena de prisão. No entanto, não é raro ouvir opiniões afirmando que “todos os condenados por tráfico de drogas são perigosos e merecem ser presos!”. Será?
O Brasil tem uma população carcerária de 450 mil presos, dentre os quais 30 mil são mulheres. O crime de tráfico de drogas responde por 20% das condenações de homens (só perde para roubo, com 30%) e espantosos 60% das condenações de mulheres. Nesse universo de mais 100 mil pessoas presas por tráfico, sabe-se que 67% são réus primários, com bons antecedentes, que estavam desarmados na ocasião da prisão em flagrante e não integravam organizações criminosas (pesquisa “Pensando Direito”, Ministério da Justiça).
Ou seja, diferente do que muitos imaginam, significativa parcela das pessoas condenadas por tráfico de drogas não são os “Beira Mar” ou “Nem”. Eles são os “avinhõezinhos”, “mulas”, pessoas que mantém o vício vendendo drogas para conhecidos e outros casos semelhantes. Esses grupos formam a base da pirâmide da organização do tráfico de drogas.
O encarceramento obrigatório de todas essas pessoas não ajudar a combater a violência, muito pelo contrário. De acordo com recente pesquisa da UnB, o índice de reincidência entre os condenados a penas alternativas é de 24%, menos que o dobro do índice verificado entre réus que cumprem penas em regime penitenciário (53,1%). Para quem tem uma boa noção do que sejam as prisões, esses números não surpreendem. Pessoas presas por pequenos delitos acabam encontrando na prisão uma escola para o crime e as organizações criminosas se valem do caos do sistema prisional para promover recrutamento em troca de proteção.
A própria ONU, reconhecendo a ineficácia da atual política criminal de combate ao tráfico de drogas, desaconselha a prisão para todo e qualquer caso, propondo até mesmo a revisão ampla do modelo repressivo em vigor.
De qualquer modo, é sempre bom lembrar que mais eficaz que a prisão de “aviõezinhos” é processar e condenar aqueles que estão no topo da pirâmide. Os barões do trafico, que não tocam nas drogas, não pisam nas favelas e continuam lucrando alto com esse comércio ilegal, à custa de um caro saldo de mortes e violência.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sem descrição do crime, STJ tranca Ação Penal

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a falta de fundamento das denúncias apresentadas contra três pessoas acusadas de serem integrantes da cúpula de uma organização que controlava a exploração do jogo do bicho no Ceará relativas aos crimes contra o sistema financeiro nacional, lavagem de capitais, corrupção ativa e formação de quadrilha. Por maioria (3 votos a 1), o colegiado manteve a acusação por contravenção de jogo do bicho e determinou o trancamento das demais, devido à falta de descrição de conduta e indicação dos crimes.
No Habeas Corpus apresentado por Francisco Mororó, Francisco de Assis Rodrigues de Souza e João Evangelista Camelo Rebouças contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a defesa sustentou que a denúncia é mera presunção de responsabilidade penal, sem discriminação da conduta, e que as acusações formuladas não encontram respaldo probatório para demonstrar as alegadas práticas delitivas. Assim, requereu o trancamento da Ação Penal em trâmite na 11ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará.
Ao acompanhar o voto do relator, ministro Nilson Naves, o ministro Og Fernandes observou que as denúncias precisam trazer a descrição de conduta e de indicação fática dos crimes, pois, caso contrário, inviabilizam o exercício da ampla defesa. “A denúncia é peça de acusação, mas, sobretudo, de justiça e, por que não dizer, de defesa, já que, a partir dela, o acusado tomará ciência do que lhe é imputado, sem qualquer obscuridade, e produzirá suas alegações de forma ampla”, destacou o ministro em seu voto-vista.
A organização que controlava o jogo do bicho no Ceará foi desmantelada durante a Operação Arca de Noé, realizada em outubro de 2008 pela Polícia Federal. O julgamento do Habeas Corpus foi interrompido três vezes por pedidos de vista formulados pelos ministros Maria Thereza de Assis Moura e Og Fernandes e pelo desembargador convocado Haroldo Rodrigues. Com informações da Coordenadoria de Editoria e Imprensa do STJ.
Ação Penal 2001.81.00025787-4

positivismo tem limites!

É inegável a importância do Poder Constituinte Originário responsável pelo primeiro e mais importante diploma legal do ordenamento, a Constituição, que é o fundamento de validade para todos os atos normativos. O objetivo do presente é estudar se há ou não limites à atuação do Poder Constituinte Originário, ante o seu caráter inicial, ou seja, se ele é ou não soberano. Impende salientar que trataremos apenas dos limites de direito[1], não dos limites de fato, que dizem respeito à eficácia do ato constituinte[2].
Para buscar a resposta utilizaremos as lições da doutrina, primeiramente conceituando o Poder Constituinte Originário, depois estudaremos o jusnaturalismo e o positivismo, expondo ao final nosso entendimento, sem pretensão de dar a última palavra sobre o tema, que comporta inúmeras discussões.
Poder Constituinte OriginárioNão há sociedade sem direito. Fala-se em sociedade, fala-se em Direito. Daí surge uma questão, quem tem o poder de estruturar, dar corpo, constituir a sociedade? É o Poder Constituinte. A expressão vem do poder de constituir, este é quem constitui a sociedade.
Abade Sieyès foi o precursor da doutrina do Poder Constituinte, na obra Que é o terceiro Estado [3]?: “A concepção de Sieyès prende ao Estado a idéia de que ao mesmo é indispensável uma Constituição e que esta é obra de um poder anterior a ela própria – o Poder Constituinte”[4].
Leciona Michel Temer que o Poder Constituinte “é a manifestação soberana da vontade de um ou alguns indivíduos capaz de fazer nascer um núcleo social” [5]: “O Poder Constituinte, como o próprio nome indica, visa constituir, criar, positivar, normas jurídicas de valor constitucional”[6]. Tais normas servem como fundamento de validade de todas as outras normas.
Paulo Bonavides assevera:
“Cumpre todavia não confundir o poder constituinte com a sua teoria. Poder constituinte sempre houve em toda sociedade política. Uma teorização desse poder para legitimá-lo, numa de suas formas ou variantes, só veio a existir desde o século XVIII, por obra da sua reflexão iluminista, da filosofia do contrato social, do pensamento mecanicista anti-historicista e anti-autoritário do racionalismo francês, com sua concepção de sociedade”[7].
Trata-se do poder de elaborar a Lei Fundamental de um país, que vinculará todas as demais, dando-lhes fundamento de validade e constituirá o marco inicial do ordenamento jurídico. Resta saber se tal atividade encontra limites jurídicos, para tanto abordaremos as teorias positivista e jusnaturalista.
PositivismoPara o positivismo jurídico, todo o direito se resume no direito positivo, ou seja, direito posto pelo Estado, na forma da lei, independentemente de seu conteúdo. Os positivistas têm a Constituição como fundamento de validade das leis. Válida é uma lei compatível com a Constituição. Esta encontra fundamento de validade na norma hipotética fundamental, que pode ser reduzida na frase “a Constituição deve ser obedecida”[8], seja ela justa ou injusta.
Dentro da perspectiva positivista, o Poder Constituinte é juridicamente ilimitado, por uma razão óbvia, já que para a doutrina positivista não há direito que possa ser invocado contra o Poder Constituinte, ele é “um poder onipotente, incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo”, conforme ressalta Canotilho[9].
Defendem os positivistas que o Poder Constituinte é o poder de criar normas que pertencem à hierarquia máxima dentro do direito positivo. Ele cria um novo Estado, um novo Direito, e não se pode falar de uma limitação do órgão do Poder Constituinte numa legalidade que nunca existiu ou que foi substituída.
Para os positivistas, como não há nenhuma espécie de regra de direito limitando a atuação do Poder Constituinte, o direito surge com a Constituição, que constitui o ponto de partida da ordem jurídica positiva. É dizer, o Poder Constituinte, segundo os positivistas, nunca estará sujeito a uma regra jurídica, já que elabora o fundamento de validade de todas as regras jurídicas.
Não há inconstitucionalidade dos atos praticados pelo Poder Constituinte Originário, já que não há limite algum a restringir a sua atividade. Seus atos não são passíveis de controle de compatibilidade com qualquer diploma ou regra.
A teoria positivista foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que não admite a tese da inconstitucionalidade das normas constitucionais elaboradas pelo Poder Constituinte Originário, salientando: “A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras é incompossível com o sistema de Constituição rígida”[10].
Diante a alegação de desrespeito à cláusula pétrea por norma elaborada pelo Poder Constituinte Originário, O Supremo Tribunal Federal decidiu:
“(...) as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida, por impossibilidade jurídica do pedido." (RTJ 163/872-873, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Pleno - grifei)
Vale assinalar, ainda, a propósito do tema, que esse entendimento - impossibilidade jurídica de controle abstrato de constitucionalidade de normas constitucionais originárias - reflete-se, por igual, no magistério da doutrina (GILMAR FERREIRA MENDES, "Jurisdição Constitucional", p. 178, item n. 2, 4ª ed., 2004, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, "Constituição do Brasil Interpretada", p. 2.333/2.334, item n. 1.8, 2ª ed., 2003, Atlas; OLAVO ALVES FERREIRA, "Controle de Constitucionalidade e seus Efeitos", p. 42, item n. 1.3.2.1, 2003, Editora Método; GUILHERME PEÑA DE MORAES, "Direito Constitucional - Teoria da Constituição", p. 192, item n. 3.1, 2003, Lumen Juris; PAULO BONAVIDES, "Inconstitucionalidade de Preceito Constitucional", "in" "Revista Trimestral de Direito Público", vol. 7/58-81, Malheiros; JORGE MIRANDA, "Manual de Direito Constitucional", tomo II/287-288 e 290-291, item n. 72, 2ª ed., 1988, Coimbra Editora)”[11].
Verifica-se que o Pretório Excelso não adotou a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem) que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com princípios constitucionais não escritos e os postulados de justiça (Grundentscheidungen). Vale dizer, segundo os positivistas não há nenhuma norma hierarquicamente superior à Constituição Federal, elaborada pelo Poder Constituinte Originário, que vinculará sua atividade, que é ilimitada, incondicionada, soberana.
Acrescenta o ministro Moreira Alves:
“Na atual Carta Magna ‘compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição’ (artigo 102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios do direito suprapositivo”[12].
Em síntese os positivistas defendem a tese que os atos do Poder Constituinte são ilimitados, pois não encontram qualquer obstáculo previsto em qualquer norma de direito positivo. Sua atuação é plenamente livre para instaurar uma nova ordem jurídica. Impende transcrever as precisas lições de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Dentro de uma perspectiva positivista, o Poder Constituinte é juridicamente ilimitado, por uma razão óbvia, porque, para a doutrina positivista, não há direito antes da manifestação do Poder Constituinte, portanto, não há direito que possa ser invocado contra o Poder Constituinte”[13].
Para o positivismo jurídico, é a Constituição, norma-origem, que importa ao jurista; não existe nenhuma limitação anterior que restrinja a atuação do Poder Constituinte Originário.
JusnaturalismoPara o jusnaturalismo, o direito não se resume ao direito positivo, porque existe um direito resultante da própria natureza humana e que o antecede. “Esse direito é, grosso modo, o que resulta da natureza humana. É o chamado direito natural”[14].
A caracterização do direito natural varia conforme a escola jusnaturalista, conforme os ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[15]. Abordaremos a Escola Tomista e a Escola do Direito Natural e das Gentes.
A Escola Tomista tem raiz no pensamento de Santo Tomás de Aquino, segundo o qual devemos distinguir um “direito eterno, a Lei Eterna, que é a própria Razão Divina, é a própria razão de Deus. Dessa Lei Eterna, o homem conhece uma parcela, através da Revelação ou da Igreja. Mas, por uma inclinação de sua razão, o homem tem acesso a uma outra parcela da Lei Eterna, e que é exatamente a Lei Natural”[16]. Não se nega a existência da lei positiva, estabelecida pelo homem, mas somente a lei positiva é válida quando se conforma à Lei Natural, à Lei Divina, que são as maneiras pelas quais os homens tem acesso à Lei Eterna.
Viamonte sintetiza o pensamento de São Tomás de Aquino, conforme salienta Maurício Antonio Ribeiro Lopes: “Diz ser inerente à natureza humana o espírito social, sendo natural, pois, que viva em sociedade e, para isso, deve fazer tudo o quanto se mostrar necessário para seu governo, mas sempre inspirado no princípio máximo de que todo poder emana de Deus”[17].
Assim, para a Escola Tomista, de Santo Tomás de Aquino, o Direito Natural é, em última análise, fundado na Lei de Deus, o que não corresponde ao que prega a Escola do Direito Natural e das Gentes, liderada por Hugo Grócio.
A Escola do Direito Natural e das Gentes teve como figura que se ressaltou Hugo Grócio, e funda o Direito Natural na razão humana e na inclinação social do homem. Esta difere da Escola Tomista, já que não funda o Direito Natural na Lei de Deus. A escola de Grócio influiu diretamente na doutrina do “Contrato social e, portanto, no pensamento iluminista que, no século XVIII, prevaleceu e se refletiu nas revoluções desse século” [18].
Segundo a tese Jusnaturalista, a liberdade, Direito Natural, é o fundamento do Poder Constituinte. Para os adeptos do Direito Natural[19], o Poder Constituinte não é uma mera força social, mas sim um poder que decorre diretamente de uma ordem jurídica natural onde a liberdade do ser humano de estabelecer novas idéias de Direito paira proeminente. O Poder Constituinte consiste num poder de direito emergente do direito de revolução que reside na nação. O direito não se resume ao conjunto de regras postas pelo Estado, mas resulta da natureza humana.
Segundo Georges Vedel, os direitos do homem, as liberdades e os direitos fundamentais, qualquer que seja o nome pelo qual sejam chamados, provêm originariamente do Direito Natural[20].
Tratam-se de direitos que antecedem o Estado, instituídos em razão da própria natureza humana, e que tem o condão[21] de restringir a atividade do Poder Constituinte Originário, em benefício do ser humano.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece:
“O Direito não se resume ao Direito Positivo. Há um Direito Natural, anterior ao Direito do Estado e superior a este. Deste Direito Natural decorre a liberdade de o homem estabelecer as instituições por que há de ser governado. Destarte, o poder que organiza o Estado, estabelecendo a Constituição, é um poder de direito”[22].
Concluindo o precitado autor que há uma limitação do Poder Constituinte pelo direito natural, ou se preferir pelos direitos humanos fundamentais universalmente reconhecidos[23].
Na doutrina defendem que o direito natural constitui limitação ao Poder Constituinte Originário: Sieyès, Maurício Antonio Ribeiro Lopes [24], Leomar Barros Amorim de Souza[25], dentre outros.
Maurício Antonio Ribeiro Lopes acrescenta: “Para os que se filiam a posições jusnaturalistas, que admitem a existência de certos direitos inalienáveis e imprescritíveis, intuídos da própria natureza humana e que precedem a existência do Estado, não resta nenhuma dificuldade na aceitação dos limites ao Poder Constituinte”[26].
Entende Otto Bachof que existem direitos supralegais positivados na Constituição Federal e não positivados. Segundo o precitado autor a positivação do direito supralegal possui mero caráter declaratório de seu reconhecimento, incluindo-se o direito supralegal no conceito de constituição material, independentemente de positivação. Assim, não apenas as infrações aos preceitos textualmente escritos no documento constitucional, mas também as infrações às normas não-escritas da Constituição material, contrárias ao direito natural, podem aparecer “necessária e simultaneamente como violação do conteúdo fundamental da Constituição” [27].
Dessa forma, os jusnaturalistas concebem o Poder Constituinte Originário como um poder inicial, contudo limitado a normas de uma ordem jurídica natural, que tem dimensão supra e extraestatal, situando-se antes e acima da própria normatividade positiva do Estado.
Assim, o positivismo se satisfaz com a observância de requisitos ou pressupostos formais positivados, que não existem para a elaboração da Constituição. Como eles não existem, a atividade do Poder Constituinte Originário é ilimitada, incondicionada, soberana.
O jusnaturalismo defende que há limites a serem observados pelo Poder Constituinte, quais sejam os direitos naturais.
O Poder Constituinte Originário ao elaborar a Constituição está sujeito a limites jurídicos, especificamente aos direitos naturais. A liberdade, Direito Natural, é o fundamento do Poder Constituinte, que não pode divorciar-se de valores fundamentais como o direito à vida, a liberdade, à intimidade, aos valores sociais, dentre outros.
Os Direitos Naturais não podem ser suprimidos em uma nova ou na primeira Constituição, independentemente de inexistir limitação expressa prevista em norma positivada no ordenamento jurídico.
Adotar a tese positivista pode nos levar a uma situação totalmente injusta. Gustav Radbruch, em sua obra Introdução à Filosofia do Direito, nos traz o lúgubre exemplo ocorrido neste século:
“O positivismo, que poderíamos resumir na fórmula lapidar de a lei é a lei, deixou a jurisprudência e o Poder Judiciário alemães inermes contra todas as crueldades e arbitrariedades que, por maiores que tenham sido, foram plasmadas pelas autoridades daquela época sob a forma de lei. Além disso, a mentalidade positivista superveniente cria dificuldades quando se pretende destacar as conseqüências daqueles desmandos legais.
A derrubada do Estado nazista, que se baseava na negação do Direito, coloca continuamente a judicatura alemã diante de perguntas que o caduco mas ainda vivo positivismo jamais poderá responder. Eis algumas: devem considerar-se válidas as medidas adotadas em cumprimento às leis raciais de Nüremberg? Deve ser considerado juridicamente válido ainda hoje o confisco de propriedades dos judeus realizados à época sob o amparo do Direito vigente no Estado nazista? Deve ser considerada juridicamente válida a sentença prolatada pelos Tribunais nazistas, em conformidade com a legislação então vigente, que condenava à morte por delito de alta traição o simples fato de escutar emissora de rádio inimiga? Devemos considerar legítima a denúncia que deu início a um processo penal e culminou nesta sentença? Continua com valor de lei para nós a decisão informal com que Hitler, no mais absoluto sigilo, desencadeou o assassinato em massa nos cárceres? Estamos obrigados, ainda hoje a manter impune um ato punível, apenas porque foi protegido por uma anistia, através da qual o Partido instalado no poder declarou subtraídos à ação penal os crimes por ele mesmo perpetrados? Merece ser chamado Estado, no sentido jurídico da palavra, um Estado que não é senão o domínio de um Partido único, que condena ao desaparecimento todos os demais e que representa a própria negação do Direito?
O positivismo, herdado do passado, para responder todas ou qualquer uma dessas perguntas, deveria remeter-se ao conteúdo da lei. E certamente parte dos problemas levantados por elas foi resolvida pelas leis da zona de ocupação americana, relativamente à reparação de prejuízos causados pelos nazistas e ao castigo pelos atos ilícitos por eles praticados, e outra parte teve resposta no Estatuto de Nüremberg e na Lei sobre o Conselho de Controle. Mas isso não é aceito pela mentalidade positivista, porque a tais leis foi atribuído efeito retroativo. Para contestar essa objeção, basta dizer que, senão as leis mesmas, pelo menos seu conteúdo se achava já em vigor ao ocorrerem aquelas situações, ao serem cometidos aqueles ilícitos; dizendo em outras palavras, essas leis correspondem, por seu conteúdo, a um Direito superior à lei, supra-legal, qualquer que seja a concepção que tenhamos desse Direito – ainda que o concebamos como um Direito divino, um Direito da natureza ou um Direito da razão.
Assim, após um século de positivismo jurídico, ressuscita a idéia de um Direito superior à lei, supra-legal, um parâmetro que permite medir as próprias leis positivas e considerá-las contrárias ao Direito, verdadeiros ilícitos sob a forma de lei. Até que ponto se deve atender à Justiça quando esta exija a nulidade de normas jurídicas que a contrariam e em que medida deve-se preferir o postulado da segurança jurídica se ele impõe o reconhecimento do Direito estatuído ao preço de uma injustiça, são problemas que examinamos e procuramos resolver nas páginas anteriores. O caminho para se chegar à solução desses problemas está implícito no nome que a Filosofia do Direito ostentava nas antigas Universidades e que, após muitos anos em desuso, ressurge hoje; no nome e no conceito de Direito Natural”[28].
Destaque-se que mesmo juristas que antes eram contrários a qualquer forma de Direito Natural buscam, após o nazismo, defendê-lo. Gustav Radbruch é um dos que se opunham ao Direito Natural, e passou a entender que o “Direito só é válido quando respeitar princípios básicos de justiça, que uns chamam de ‘direito natural’, e outros de ‘direito racional’”[29].
Ressalta o Professor Jacy de Souza Mendonça que “durante os cinco anos do curso de bacharelado jurídico, o Direito é estudado como sendo a lei, embora não haja sinonímia, não haja equação entre ambos. A lei expressa o Direito, em forma inadequada e pobre, a riqueza da realidade jurídica, mas as dimensões totais do Direito não se encerram apenas nela, expressão limitada, pobre e fugaz de uma realidade rica, permanente e fecunda”[30].
Não se pode olvidar que “Direito injusto não é Direito. Poderá ser convenção humana, vontade de uma assembléia ou imposição de um ditador, mas, apesar dessa forma jurídica, apesar de ser elaborado segundo a técnica jurídica, ter todas as características formais da norma jurídica, se não tiver conteúdo justo, não é Direito”[31]. “O Direito é a própria coisa justa, já tinham visto os romanos”[32].
Discordamos de Paulo Bonavides quando afirma que o Poder Constituinte “é o poder que tudo pode”[33]. Não se pode admitir nos tempos atuais que o Poder Constituinte Originário institua a escravidão[34], a tortura, ou até o direito de pernada[35], verdadeiras práticas arcaicas, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, injustas, e que violam direitos naturais.
A criação do Estado é uma maneira que os homens usam para terem garantidos e respeitados os seus direitos, que foram conquistados no curso da evolução histórica da humanidade e estão incorporados no patrimônio da humanidade, não podendo ser abolidos por ato do Poder Constituinte Originário.
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[1]. Não abordaremos as limitações impostas pelos Tratados e Convenções Internacionais que não versam sobre os direitos humanos
[2]. As Constituições que ficaram letra morta são as que Lassale chamava de Constituição da folha de papel.
[3]. Escrito no original: Qu’est-ce que le tiers État.?. Tal obra consiste no verdadeiro manifesto da Revolução Francesa, ode expõe as reivindicações da burguesia, definindo-a como a nação e, conseqüentemente, titular do Poder Constituinte. Hoje predomina na doutrina o entendimento que o povo é titular do Poder Constituinte, neste sentido: Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O poder constituinte, p. 158; Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, p. 32; Aricê Moacyr Amaral, O poder constituinte, p. 16 apud Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, p. 51.
[4]. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Poder Constituinte Reformador: limites e possibilidades da revisão constitucional brasileira, p. 46
[5]. Elementos de Direito Constitucional, p. 29.
[6]. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, op. cit., p. 24.
[7]. Curso de Direito Constitucional, p. 120.
[8]. Paloma Santana Modesto, Poder Constituinte Originário, p. 101. Manoel Gonçalves Ferreira Filho leciona que a norma hipotética fundamental tem o seguinte enunciado: “devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve”, op. cit., p. 51.
[9]. Direito Constitucional, p. 94.
[10]. STF – Pleno – Adin nº 815-3, Rel. Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 10 de maio de 1996, p. 15.131. No mesmo sentido na doutrina é a lição de Francisco Campos, Direito Constitucional, p. 392.
[11] STF – Pleno - ADI 3300 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 03/02/2006, publicado em DJ 09/02/2006 PP-00006 RTJ VOL-00200-01 PP-00271 RDDP n. 37, 2006, p. 174-176 RCJ v. 20, n. 128, 2006, p. 53-60 RSJADV jul., 2007, p. 44-46.
[12]. A Inconstitucionalidade de Normas Constitucionais Originárias - Sua Impossibilidade em Nosso Sistema Constitucional, artigo retirado da internet.
[13]. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O Poder Constituinte, p. 70.
[14]. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O Poder Constituinte, p. 51.
[15]. Op. cit., p. 52.
[16]. Ibidem, p. 52.
[17]. Op. cit., p. 34.
[18]. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 52.
[19]. Adotamos a lição de Tércio Sampaio Ferraz no sentido de que há quem diga que os direitos humanos formam um corpo jurídico dito de Direito Natural, ínsito à natureza humana, e que portanto está acima da Constituição que é obra política, feita pelos homens, apud Maurício Antonio Ribeiro Lopes, op. cit., p. 106.
[20]. Neste sentido: George Vedel, La constitution comme garantie des droits: le droit naturel, p. 205-215, apud Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas, Alberto Nogueira, página jurídica do Conselho da Justiça Federal, “internet”.
[21]. Logicamente segundo a teoria jusnaturalista.
[22]. Curso de Direito Constitucional, p. 20.
[23]. Ibidem, p. 71.
[24]. Op.cit., p. 107.
[25]. “Os direitos humanos como limitação ao poder constituinte”, Revista de Informação Legislativa, 110/84.
[26]. Op. cit., p. 107.
[27] “Normas constitucionais inconstitucionais?”.Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994, p. 63.
[28]. tradução do final do livro, feita pelo Professor Jacy de Souza Mendonça. Texto disponibilizado pelo tradutor, que leciona Filosofia do Direito I, no Curso de Mestrado da PUC-SP.
[29]. Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua reserva de justiça, p. 110.
[30]. O Curso de Filosofia do Direito do Professora Armando Câmara, p. 23.
[31]. Jacy de Souza Mendonça, op. cit., p. 127.
[32]. Ibidem.
[33]. Curso de Direito Constitucional, p. 127.
[34]. Discordamos de Kelsen, citado por Paulo Bonavides, ao afirmar que a “introdução da escravidão como instituto jurídico se acha inteiramente no âmbito da possibilidade de uma ordem jurídica”, Direito Constitucional, p. 151, por ferir o Direito Natural à liberdade, fundamento do Poder Constituinte, segundo o jusnaturalismo.
[35]. ou jus primae noctis, que consistia no “direito dos senhores de manterem relação sexual com as jovens aldeãs de seu feudo na noite em que elas se casassem”, José Damião Lima Trindade, Anotações sobre a história social dos direitos humanos, in Direitos Humanos: Construção da Liberdade e da Igualdade, p. 26, nota de rodapé n. 40.